Um amigo, pai de um recém-nascido, me confidenciou que estava com medo da mulher, mãe de seu filho. Não sou particularmente amiga de sua esposa. Tenho por ela uma simpatia distante, um pouco mais que sororidade, um pouco menos que amizade. Sem dar qualquer crédito àquele ridículo atestado de incompetência, respondi: “é bom ter medo mesmo, prudente, mães são capazes de absolutamente tudo”. Respondi séria, cara fechada. Ele aceitou calado, mudo, reduzido à sua condição de apêndice.
Não tive e tive a intenção de ser cruel. O homem branco cis hétero típico não sobrevive a um dia de uma mulher, de um gay, de um negro, de uma pessoa trans. Que dia o quê, não sobrevive nem meia hora. Não tenho paciência. É meu amigo, amigo querido, mas zero paciência. Quando vem aquele papo de “nem todo homem” eu tenho vontade mesmo é de partir para a violência física.
Contrariando absolutamente tudo em que eu acredito e, exatamente por esse motivo, tive fé que a ironia seria óbvia e completei: “man up”.
Lembro de tantos, mas tantos momentos em que a exaustão – ou a doença ou a falta de dinheiro ou tudo isso junto – me pesava como se adicionasse um quilômetro à constante universal da gravitação, me grudando ainda mais ao chão e que, no entanto, levantei e fui cuidar de filho. Eu e toda mãe. Não fiz nada além do que toda mãe faz, todo dia, todo minuto. E, como muitas mulheres, depois de mais um dia impossível, ainda precisei ouvir discurso de homem incompreendido, trabalhador, cansado, coitadinho.
Rodou um meme Safra Covid que dizia mais ou menos assim: “não entendo o motivo de medir a temperatura de homens, já viu algum com febre andar?”
Naquele momento, mesmo sendo meu amigo de infância, tive vontade de gritar. De lhe dizer tudo, como um vômito, de lhe cuspir na cara toda a raiva contra aquilo que, por mais que não fosse sua culpa individualmente, era de sua responsabilidade. Essa é a grande questão do privilégio: o privilegiado simplesmente não entende o que é não ter o privilégio. O homem não faz a menor ideia do que é não ser homem (ou hétero, ou branco etc). É um problema ontológico.
Certa vez tive uma discussão muito séria com uma pessoa que me é muito cara. Ele gay e o assunto era homofobia. É um assunto sério. Em nenhum momento eu o diminuo ou o considero menos grave. Lá pelas tantas ele me diz: “você não sabe o que é andar na rua com medo”. Eu tive um pequeno colapso. Sim, eu sei o que é isso desde que aprendi a ficar em pé. Eu sou mulher. Naquele instante, naquela frase, caiu sobre mim um conjunto amorfo das lembranças de abusos, de injustiças, de preconceitos, de machismo. Permaneci segundos sem reação exterior porque no interior me voltavam todas as vezes em que tive medo. E então percebi que, mesmo sendo gay, ele ainda era um homem típico. Um homem típico, branco, cis, rico e sem filhos. Caiu sobre mim uma enorme decepção. Como um mal súbito, fiquei até um pouco tonta.
Cansei de tentar explicar a vida a homem feito. Hoje me limito a educar bem filho e torcer por uma geração melhor. Percebo sinais de mudança, estou otimista com o futuro. Ao mesmo tempo, cansada do meu presente.
Em 1827 foi liberado que meninas frequentassem a escola. Ainda assim, apenas no ensino elementar. Foi só em 1879 que conquistamos o direito às faculdades. Menos de 90 anos atrás o voto feminino no Brasil foi conquistado. Em 1962, com o Estatuto da Mulher Casada, deixou de ser necessária a autorização do marido para trabalhar. Foi também quando conquistamos o direito à herança e a possibilidade de pedir a guarda dos filhos após uma separação. Eu já era nascida quando, em 1974, mulheres conquistaram o direito de ter um cartão de crédito. Foi em 1985 a criação da primeira delegacia da mulher. Em 1988 a Constituição Brasileira passou a reconhecer as mulheres como iguais aos homens. E, finalmente, foi apenas em 2002 que “falta de virgindade” deixou de ser crime e motivo de anulação de casamento.
As sequelas dessa lentidão em considerar mulher como uma pessoa são sentidas, todo dia. Todo santo dia. Por todas as mulheres. É um cansaço que não acaba. Me acostumei a ele, não sei como é não estar cansada. É um cansaço do mundo, da vida. E, como toda mulher, a gente pega, engole tudo isso com a saliva e vai trabalhar.
Crônica publicada
Revista Pessoa em 04/01/2021
Edições Mombak
Lisboa
ISSN 21791929