Existe uma certa inveja — quero crer que em todos, não me deixem sozinha nessa, por favor! — em ler um livro muito bem escrito. Dá um pouco de raiva. Tive essa sensação com autores contemporâneos poucas vezes.

Não vou aqui ficar incensando os Joyces ou os Cervantes da vida. O crivo do tempo já lhes serviu bem. Me interessam os vivos.

“Me interessam os vivos” é uma afirmação polissêmica.

A última grande emoção literária foi com Formigas no paraíso, do Mateus Baldi. Livraço.

Coloco também na categoria “livros de dar inveja” Gótico nordestino, do Cristhiano Aguiar; A cachorra, da Pilar Quintana; Corpos secos, de Luisa Geisler, Marcelo Ferroni, Natalia Borges Polesso e Samir Machado de Machado e; Fé no inferno, do Santiago Nazarian.

Na próxima aba do navegador lento e travado que é o meu cérebro, Macbeth com Denzel Washington; Belfast, do Kenneth Branagh e; Madres paralelas, do Almodóvar.

Também tenho inveja de gente afinada, que sabe cantar ou tocar um instrumento, mas essa frustração a terapia deu conta. Tudo bem, eu tenho Spotify. Sobreviverei.

Meu mundo é esquisito, torto, esquerdo, labiríntico, mas muito colorido e cheio de arte, literatura e música. Caetano me faz companhia nesse início de velhice. Do futuro, espero a alegria, alegria.

O Sol nas bancas de revista
Me enche de alegria e preguiça
Quem lê tanta notícia?
Eu vou
Por entre fotos e nomes
Os olhos cheios de cores
O peito cheio de amores vãos
Eu vou
Por que não? Por que não?
(…)
Sem lenço, sem documento
Nada no bolso ou nas mãos
Eu quero seguir vivendo, amor
Eu vou
Por que não? Por que não?
Por que não? Por que não?
Por que não? Por que não?

O brasileiro é alegre. Precisamos recuperar nossa brasilidade, que nos foi tirada à força por um segmento da sociedade contrário, curiosamente, a tudo que ela representa.

A brasilidade é a alegria do samba, o direito ao nome social, o filho de faxineira na faculdade.

Como já disse Jorge Mautner, a brasilidade é o oposto da nazificação.

Mas quero voltar para a questão polissêmica dos vivos.

O primeiro texto que publiquei na vida foi sobre a morte. Eu tinha 12 anos de idade. Foi nos Cadernos de psicanálise, da Sociedade de Psicologia Clínica, Instituto de Psicanálise (RJ), ano 3, número 4, maio de 1984. É um assunto, portanto, que me interessa faz algum tempo.

Levei quase cinco décadas para perceber que inconscientemente acabava me relacionando sempre com homens Thanatos. Mais ou menos uns dois anos atrás tomei a decisão de que não queria mais essa pulsão nos meus dias. Nesse ano pessoal (de aniversário a aniversário) que começa agora, escolho Eros. O que mais me impressiona é que, no fundo, é, sim, uma escolha.

Saber que é uma escolha é libertador.

Só os vivos podem escolher.

Crônica publicada no Rascunho em 17/03/2022