A minha grande desgraça foi ter sido criada por um homem doce e generoso. Acreditei que esse era um padrão possível.

Todos os homens que amei, amei intensamente. Poucos mereceram.

Ela. Lembro como se fosse hoje.

Existem muitas escuridões, me disse.

Existem muitas escuridões, me disse e lacrimejou.

Agora, quem chora sou eu.

Como dizer para alguém que o pai dessa pessoa foi abusivo? Como, com um relato, destruir a imagem de uma pessoa que foi um dos pilares da formação emocional de alguém? Isso não é, moto contínuo, destruir esse alguém?

Não sei conjugar esse verbo.

Não sei dizer escuta, tenho aqui uma coisa para te contar, uma coisa que sei há muito tempo e que vai te destruir.

Como contar das noites em claro, do choro engolido, da dor ignorada? Como contar das vezes em que, mesmo não podendo, eu fui? Das vezes em que, mesmo com dor, eu fiz? Do cansaço extremo, quando uma parte do seu corpo não obedece mais ao cérebro? Da tristeza profunda, da solidão extrema, da desimportância sentida?

Como olhar no olho de quem amamos e, conscientemente, falar tudo aquilo?

Como chegar para alguém e destruir esse pai? Era pai? É destruir? Tenho esse direito? Ou, ainda, essa necessidade? Já se passaram muitos anos. Melhor é deixar para lá.

E de lá em lá, vou eu me destruindo. Eu e toda mulher. Eu e toda mãe. Eu e toda filha. Eu e toda irmã.

Como escancarar essa paleta de tons roxos? Os hematomas emocionais. A psiquê fraturada.

Como contar da agressão recebida, travestida de brincadeira? Como explicar “isso aqui acabou comigo” e, ao te contar, estou acabando com você? E sei disso?

O pequeno abuso tende a se repetir, justamente por ser pequeno, por ser ah que bobagem minha filha todo homem faz isso.

São muitos os pequenos abusos, mas são sempre de núcleos machistas. Família, trabalho, faculdade, academia, tanto faz.

Nossa, você não sabe levar na esportiva. Ai, credo, que mimizenta. Que bobagem, isso não é nada.

E você diz, com calma e serenidade: isso me machuca, por favor não faça mais.

E fazem.

E você repete. Uma segunda, uma terceira, uma quarta vez.

Aí você explode. Ou desmonta. No fundo, é a mesma coisa.

Nossa, que grossa. Credo, pra que tudo isso? De onde isso veio? É tpm, é? Acho muito feio mulher que grita, que fala palavrão. Gosto é de mulher delicada. Não aguento mais uma discussão, vou embora, volto quando você estiver calminha.

E você vai e tira energia deus sabe lá de onde, se acalma, fala bem devagar e delicadamente, como se estivesse tratando com um psicopata idiota e imaturo. Porque está. Engole e tenta de novo.

E explica. E faz concessões. E tenta de novo.

São muitos os pequenos abusos.

São muitas escuridões.

 

Crônica publicada

Revista Pessoa em 07/10/2020

Edições Mombak

Lisboa

ISSN 21791929