Chegamos mas não quero sair do carro. A música ainda não acabou.
Mais uma estranheza minha no mundo.
As pessoas não acham normal você ficar sentada dentro do carro, no estacionamento, esperando a música acabar.
Há um imediatismo em tudo o que diz respeito a chegadas.
Chegadas, já nos ensinou a física clássica, é algo muito relativo.
Eu nunca chego a lugares. Sempre me considero em passagem, em movimento, em fluxo. O que é bastante irônico considerando que, para quem olha de fora, estou normalmente quieta olhando para o nada.
Janis Joplin ainda se esgoela quando desligo o carro, completamente vencida. Oh Lord, won’t you buy me a Mercedes-Benz? Dirijo um carro popular. Fico achando que Janis ri de mim, de algum outro lugar onde ela, também, é transitória.
Não faz mal. Perco com frequência, estou acostumada. Levanto e, sob olhares atentos, começo a andar.
A trilha sonora muda, mas essa é uma cena recorrente.
Começo a andar e tudo, absolutamente tudo, chama a minha atenção.
O musgo sobe na parede lado a lado com uma trepadeira qualquer. Parece uma buganvília mas eu não lembro nome nem de parente, não vou lembrar de planta.
Passa um cachorro. O dono do estacionamento faz um carinho. Parecem ser velhos conhecidos. Ou não, não importa.
Pego o papelzinho que me garante que meu carro será devolvido. Fascinante como toda nossa sociedade está organizada em torno de papeizinhos sem valor qualquer intrínseco. Todo o valor que atribuímos a recibos de estacionamento, papel moeda, certidões e afins é uma literatura. Eu digo que o que está no papelzinho vale tal coisa, você acredita e assim seguimos. Somos mais do que seres de linguagem. Somos seres de ficção. Inventamos o mundo à nossa volta e criamos deuses à nossa semelhança.
O musgo é lindo.
Janis ainda canta-grita dentro da minha cabeça.
Guardo o papelzinho dentro da capinha do celular e seguimos em direção ao restaurante.
A escada é de um vermelho tijolo lindo.
Tem um gato em cima do muro. Ele me vê. Nos respeitamos à distância.
Restaurante vazio, com poucas mesas ocupadas. A crise ou o horário?
Peço para ficar virada para a porta, como sempre. Deve ser alguma memória genética qualquer. Medo do pterodáctilo, da onça ou da máfia italiana, sei lá. Não importa. Sentamos.
Namorado sorri.
Olho o menu e me parece tudo exatamente o mesmo. Percebo que ainda estou no carro, ouvindo Janis.
Se concentra, Carolina, você é alfabetizada, você consegue ler um menu.
Volto à primeira página. Pareço indecisa mas isso é um engano. Não sou indecisa, sou distraída.
Alguém na mesa escolhe algo que me parece relativamente seguro e digo, preguiçosamente, eu também.
O olho que cuida do pterodáctilo também presta atenção na briga de família da mesa ao fundo, no casal de adolescentes ao nosso lado, no maître à beira de um ataque de nervos e no entregador que entra pela porta errada.
Se pareço distraída é porque estou.
Voltamos para casa e, na garagem, a música ainda toca. Outra. I put a spell on you. Desisto e saio do carro. Me perdoe, Nina.
Crônica publicada no Rascunho em 23/06/2022