Crônica "Não é crise, é projeto", publicada no Rascunho em 03/11/2022. Ilustração: Thiago Lucas. https://rascunho.com.br/liberado/nao-e-crise-e-projeto/

Tem uma história antiga na minha família, recontada tantas vezes que já nem tenho certeza da origem certa. É das irmãs da minha avó e, portanto, uma história com uns 50 anos de idade e versões. É sobre uma receita de torta de ameixa. Naquela estranha época quando ainda existia telefone fixo e a internet ainda não tinha sido inventada, uma irmã passa oralmente a receita para outra, até que vem a pergunta: “mas quanto de ameixa vai?”. A resposta correta, maravilhosa, é “uma boca cheia de caroço”. Depois de tirar o caroço da ameixa para ir na torta, qualquer ser humano de bom senso chupa o restinho da fruta. Encheu a boca, chegou na quantidade correta. Eu amo essa história justamente porque o referencial é o humano, não o dogma (a receita).

Esse ponto é, pra mim, divisor de águas em tudo na vida. Se o humano está no centro, eu respeito. Se o dogma está no centro, não. Simples assim.

Então, por exemplo, gosto das religiões budistas-e-afins, afrodescendentes e outras, que celebram casamentos homoafetivos, que acolhem pessoas trans e que, basicamente, não são preconceituosas, racistas, homofóbicas, transfóbicas, machistas. Mesmo eu sendo branca, hetero e cis, não gosto das religiões pentecostais, muçulmanas e mais um monte de outras aí, exatamente pelo mesmo motivo: são machistas, transfóbicas, etc. É possível ser contra o preconceito mesmo que esse não te afete diretamente. É uma questão de direitos humanos, não de individualidade.

Escolho meus representantes políticos com o mesmo critério. Quem coloca a humanidade – e, portanto, o coletivo – no centro. Por esse motivo, voto sempre na esquerda. Escrevo essa crônica antes de saber o resultado das eleições presidenciais. Vai ser publicada depois. Há aqui, portanto, um anacronismo importante.

Deleuze, no Abecedário, fala sobre o que é ser ou não de esquerda para ele (e para mim):

Não ser de esquerda é como um endereço postal. Parte-se primeiro de si próprio, depois vem a rua em que se está, depois a cidade, o país, os outros países e, assim, cada vez mais longe. […] E ser de esquerda é o contrário. […] É de fato uma questão de percepção. Não tem nada a ver com a boa alma.

A nossa eleição, aqui no Brasil, é um exemplo gráfico desse pensamento. Um candidato pensa o país a partir do humano coletivo: do público, do social. Outro candidato pensa o país a partir do dogma: a economia, a moral, a tradição. Eu já gostaria mais do primeiro sem nem precisar que o segundo tivesse feito as atrocidades que fez. Eu já gostaria mais do candidato de esquerda simplesmente por ser de esquerda.

Não importa o que aconteça nessa eleição, teremos aproximadamente metade do país insatisfeito. E isso é muito grave. Essa cisão foi provocada e planejada pelo setor da sociedade que atualmente está no poder. Levaremos muito tempo para cicatrizar esses anos. Como dizia Darcy Ribeiro sobre a educação, isso não é uma crise, é um projeto.

Na torcida para que, quando essa crônica for publicada, a metade insatisfeita seja a que fica à direita.

Crônica publicada no Rascunho em 03/11/2022