Você, sobressaltado, apareceu na porta da varanda, olhou para mim e voltou para a cama. Você dormia e eu lia um livro, muito bom por sinal. Percebi nesse instante o seu verdadeiro medo: o do abandono.
Você não disse nada, felizmente. Só olhou. Nesse momento, de aproximadamente 5 segundos, me dei conta de muita coisa. Me dei conta de que você na verdade era um menino assustado. De que eu sou cruel. De que você tem medo de ficar sozinho.
O fato de eu não ter medo da solidão é que me torna cruel.
Quando te conheci, você carregava no dedo um anel supostamente místico e no peito uma dor enorme. Tinha a mão amarelada e os lábios ressecados pelo cigarro.
Suas mãos me massageavam como quem massageia seu próprio ego. O sexo era bom, mas não tão bom quanto você queria acreditar. A autoestima do homem típico da minha geração é algo que precisa ser estudado à luz da ficção, não da psicologia. Nesse caso em particular, homem branco, cis, hetero, de meia-idade, classe média. Ou seja, tudo de ruim numa só pessoa.
Ainda assim, eu quis.
Em um momento cômico, lembrei do George Carlin: Here’s all you have to know about men and women: women are crazy, men are stupid. And the main reason women are crazy is that men are stupid.
Tenho cá minhas pequenas perversidades, como sair e deixar um bilhete só com uma marca de batom grudado no espelho. Essas lembranças tomam conta dos meus pensamentos. Largo o livro e fico olhando para o teto, meu esporte favorito.
Outra crueldade foi não telefonar.
Ou telefonar e falar de trabalho.
Ser pega chorando, esfregar as lágrimas, sorrir, não dizer nada, ou melhor: dizer que não foi nada.
Me tornar amiga da sua filha e sair para almoçar com ela e não contigo.
Não cozinhar nunca e, quando, botar bastante coentro. Sei que você odeia.
Ter zero interesse em seus relatos de juventude. E zero paciência para saudosismos.
Acho mesmo que seus amigos de infância são chatos de dar dó.
Reencontros são, na verdade, uma ironia da gramática. Nunca se reencontra a mesma pessoa e nunca somos os mesmos. Necessariamente, sucumbem à desilusão. Aqueles que amamos desaparecem, surgem, no lugar, outras pessoas, das quais podemos ou não gostar. Passado não é o destino. Memórias de infância são sempre bonitas porque nunca são a realidade. As memórias podem até ser doces. “Doces com sabor de infância.” Doces com sabor de ilusão, isso sim. A ilusão é doce e infantil. O mérito do imaginário é indiscutível. Proporciona emoções inviáveis. É o ópio da criança.
E, ao te dizer isso, naquele momento, fui cruel.
Você disse “muito pesado”. Olhei para você e pensei “muito pouco”.
Fui cruel quando você me perguntou no que eu estava pensando e eu respondi.
Fui cruel quando você me chamou e eu não fui. Ou fui.
Fui cruel quando levantei e fui embora.
Mas mais ainda foi você, por saber disso tudo e sorrir.
Apenas sorrir.
Crônica publicada no Rascunho, em 29 de outubro de 2020.