A lembrança plástica mais forte que tenho dos meus momentos mais difíceis e dos meus momentos mais felizes é sombra.
Um tempo atrás, quase morri em decorrência das minhas paratiroides não voltarem a funcionar depois que precisei cirurgicamente retirar a tiroide. Não sou dada a essas violências mas era eu ou ela, vejam bem. Meu filho me levou para o hospital, quando, do alto de seus 13 anos recém-feitos, encontrou a mãe em eclampsia e paralisia parcial ao retornar da escola. Esse menino atingiu a maioridade naquele dia. Passei duas semanas sozinha no hospital. Não gosto de televisão e tinha drogas demais pingando no soro para ler algo que prestasse. Recusei a revista Caras. Restaram-me as sombras projetadas no teto do hospital, noites adentro. Elas formavam um balé e eu, sem conseguir virar-me para a janela, tentava construir no meu imaginário o que as causava. Alegoria da caverna, sim, eu sei, total.
Quando fui diminuída por quem deveria me proteger. Mesma coisa, mas sem drogas.
Divórcio. Idem.
Quando fui diminuída por quem deveria me proteger. Idem.
Quando o Edu morreu. Idem.
Quando fui diminuída por quem deveria me proteger. Idem.
Quando minha mãe morreu. Idem.
Quando fui diminuída por quem deveria me proteger. A repetição deste item está aquém da ocorrência.
Acho que vocês entenderam.
Não associo sombras a momentos ruins, entretanto. Associo a momentos introspectivos, que podem ser bons também.
Sexta à noite, a caminho do atelier, o trânsito paulistano dos infernos me permitiu apreciar com detalhes uma sombra projetada de uma árvore. Fica na Rua Coronel Lisboa, pouco antes de chegar na Dr. Altino Arantes, do lado direito, uma casa colorida (tenho quase certeza de que a parede é salmão). Tem uma árvore na frente e, do outro lado da rua, um bar, restaurante, sei lá, com uma luz muito forte. Morar ali deve ser um horror: uma luz que te cega, um barulho insuportável, um trânsito alucinante, ônibus, etc. Mas, de algum modo, os moradores têm poesia. Pintaram a casa em uma cor bem forte e têm o seu teatro de sombras particular, sem dever absolutamente nada ao pinyin.
Depois ainda me perguntam porque não tenho cortinas.
Publicado no portal Vida Breve em 11 de dezembro de 2017.