Uns anos atrás, em um evento literário em Lençóis Paulista, fui dar uma caminhada e cheguei num lugar meio perdido. Sentei no chão olhando pro nada. Senta do meu lado, olhando para o mesmo nada, um senhor local. Antes que eu pudesse me refazer do estranhamento, ele diz: “Lindo né?” E então começa a fazer gestos com a mão. “Ali eu vou plantar milho.” A terra era dele, a invasora era eu. E então ele fecha os olhos, levanta um pouco a cabeça, sente o cheiro do mato no ar e continua. “Olha, não é lindo? Ali, logo ali, umas abóboras. Eu adoro abóbora.”

Acho que a maternidade é um pouco assim. A gente olha para aquele maquiavelzinho remelento, nariz escorrendo, senta, termina o seu prato que isso aqui não é restaurante, senta, não morde o cachorro, senta, moedas não são comestíveis, senta filhote de cruz credo, de meia pela casa, jogando bola na sala, desliga a tv, escova os dentes, escova os dentes no banheiro, dedo no nariz, não dá respostinha menino, tira a pilha do nariz, senta, porque sim inferno, e o que a gente vê? Vê uma horta aqui, um pomar ali, um cajueiro acolá. Dependendo do talento do salaizinho, dá para ter esperanças até mesmo de uma jabuticabeira.

Na falta de uma grama para ficar olhando, São Paulo né, quem mandou, entro no Pinterest. A quantidade de horas que eu gasto salvando e organizando projetos que eu nunca farei é um caso a ser estudado pela ciência. Eu entro no site como quem vira o primeiro copo de caipirinha. Eu sei o efeito que tem. Eu sei o tempo que eu vou jogar fora. Eu sei que esse tempo cobrará o seu preço em prazos cada vez mais apertados. Eu tenho plena e absoluta consciência de que não deveria fazer isso. E, no entanto, faço. A quantidade de coisas que eu faço sabendo que não deveria fazer é assustadora. Não posso alegar inocência.

O que me lembra uma coisa que minha mãe falava, de que inocência era uma coisa muito perigosa. E é. Eu sempre penso nisso, agora que sou eu a mãe. Como explicar sobre as durezas do mundo sem traumatizar o rebento para o resto da vida? Na dúvida, eu conto e pago a terapia depois. Damage control que chama, google it.

Existe uma aura falsa, hipócrita, injusta, pesada em torno de ser mãe. As pessoas olham para um pai que cuida de seus filhos como se fosse um semideus. Olha, desculpe, não é. Não faz mais que a sua obrigação. A maternidade é tão “sagrada” quanto a paternidade. Ou seja, não é. Tem muito mais relação com amor, responsabilidade, paciência e obrigação do que com auréolas.

Até as auréolas, por sinal, são também um tipo de mentira. Elas são o sol de Apolo e deveriam indicar alguém sábio, não santo. Por muito tempo foi assim, uma forma de indicar para a população analfabeta quem ali daquelas figurinhas pintadas merecia algum destaque. Apolo, por sua vez, também roubou essa iconografia. As auréolas já apareciam no Egito Antigo, para indicar quem ali era o Rá (deus Sol, veja você o sol aí de novo). E os egípcios com certeza roubaram a ideia de algum outro que por sua vez roubou de um neandertal mais talentosinho. Nada se cria, nada se perde, tudo se transforma, já dizia o velho Lavoisier. Ou o Chacrinha, tanto faz.

Não importa. Nada disso importa.

Não importa porque é tudo falso. A maternidade tem momentos maravilhosos, claro. Botando na balança, o saldo é tão positivo quanto o superávit da Irlanda. É o que garante a sobrevivência da espécie. Isso e amnésia. Só que não é tudo bom. Não é tudo lindo. E certamente não é sagrado. Então vamos parar com essa merda.

E senta aí, cacete de menino.

 

Publicada na Revista Pessoa em 17 de junho de 2020.

Revista Pessoa
ISSN 21791929
Lisboa