Em Fé no inferno, de Santiago Nazarian, existe uma figura – um conceito – da mesma história contada de maneiras diferentes, materializada também e didaticamente nos livros encadernados na estante do velho armênio.
Esse é um grande pesadelo para mim. O risco de contar sempre a mesma história. Ou, pior ainda, de repetir sempre a mesma voz. Por esse motivo, optei por um exercício literário: escrevo sempre na primeira pessoa, ficção ou não. Questiono se faz alguma diferença. Acho mesmo que não. Divirto-me com alguns amigos errando rudemente o que é ou não autobiográfico. Ou biográfico, de alguém outro.
Tenho particular interesse pelas histórias de reconhecimento da queda.
Chorei, não procurei esconder
Todos viram, fingiram
Pena de mim, não precisava
Ali onde eu chorei
Qualquer um chorava
Dar a volta por cima que eu dei
Quero ver quem dava
Uma mulher de moral não fica no chão
Nem quer que homem
Lhe venha dar a mão
Reconhece a queda e não desanima
Levanta, sacode a poeira
dá a volta por cima
Tenho certeza de que o Paulo Vanzolini me perdoaria a pequena edição.
“Sacode a poeira, dá a volta por cima” é, na verdade, um tema-base recorrente. Está em toda jornada do herói, em epopeias, telenovelas, mangás etc. No fundo, a gente gosta de perceber que não é o único a levar tombos da vida.
A minha vida, pelo menos, faz mais sentido se contada pelas quedas. Pelas vitórias seria uma história muito curta.
Não confio em adultos sem cicatrizes, traumas ou sequelas. Só existem duas possibilidades: ou essas pessoas mentem, ou estão do lado do opressor.
Já estive tantas vezes no chão, com o peso de uma vida inteira sobre o peito, que aprendi a me forçar a respirar novamente. Existe uma técnica de meditação para restaurar a calma chamada Sudarshan Kriya. Faço algo parecido, de maneira autodidata, mas com a consciência de que é impossível restaurar algo que nunca existiu. De todo modo, precisei, vezes demais, realocar toda a minha energia física e mental para a respiração.
Veremos, com certeza, quando a pandemia passar – há de passar! – uma enxurrada de histórias de superação, de voltas por cima. Há um quê de piegas nisso mas, como em toda breguice que se preze, há também uma verdade.
Existem muitas maneiras de se contar a mesma história, especialmente as verdadeiras.
O velho armênio do Santiago Nazarian me lembra de muitos outros expatriados, refugiados, fugidos, marginalizados. A Armênia real não deve ser esquecida. A armênia metafórica que molda todos nós também não.
Só o fato de uma música gravada pela primeira vez em 1962 ainda ser conhecida, relevante e popular é um bom indicativo de que não estamos sozinhos. De que reconhecemos a queda mas não ficamos no chão. De que levantamos.
Às vezes não sabemos como, nem de onde, tiramos forças. Temos, todos, alguns momentos na vida que, ao olharmos para trás, simplesmente não sabemos como conseguimos sobreviver. Como conseguimos. Conseguimos.
Algumas sequelas, eu sei. Eu também.
Ali onde eu chorei, qualquer um chorava.
Somos todos velhos armênios.
Crônica publicada no Rascunho, em 14/01/2021