O café que meu filho fez se mistura com o meu sonho, invade um espaço que é só meu e me acorda pela manhã. A luz natural que entra pela janela não é suficiente para clareza de detalhes. Gosto da minha casa, especialmente nessa hora.
Estamos em quarentena e, portanto, todos os meus horários foram para o lixo. Mesmo assim, acordo às 7h por hábito. Meu corpo é burro e lento, ainda não sabe que o mundo acabou.
Aos poucos, a tonicidade muscular volta a funcionar. Grudo os pedaços de mim, espalhados no travesseiro e no sonho.
E levanto.
Tomamos o café da manhã sentados no sofá. A mesa está completamente tomada por livros, tintas, papéis e um gato. Suspiro. Comento “precisamos arrumar a casa, filho”. Ele concorda. Nada faremos a respeito e os dois sabem disso. Esperamos, ambos, que observação funcione igual à admissão de culpa por criminosos e reduza a nossa pena. Infelizmente, nada acontece. Talvez seja só nos filmes mesmo, não sei.
Noto, com alegria confessa, que não são só mais os meus livros que tentam dominar a casa, pedindo usucapião do imóvel e o transformando, finalmente, em uma enorme biblioteca. Agora, que os livros de filho se uniram a essa tentativa de motim, ficará cada vez mais difícil impedir a realização desse devir bibliofílico.
Levanto, lavo a louça do café e tiro o frango do congelador. Coloco a ração dos quadrúpedes e troco o jornal da cachorra. Já posso esquecer da casa até a hora do almoço.
E esqueço.
Encontro o livro “Cálculo: funções de uma e várias variáveis” e me pergunto se seria uma referência velada, de um autor-matemático-amante-das-artes, à obra do Joseph Kosuth (Uma e três cadeiras, 1965). O receio de que o livro me morda, entretanto, foi mais forte do que a curiosidade.
Gosto desse ambiente que permite bichos, livros, jazz, anime, Tarkovsky e campeonatos de LOL com igual respeito.
Em um momento recente, percebi que sou mãe de filho adulto. Deve ter acontecido enquanto eu dormia. O que, claro, é muito estranho porque ele nasceu ontem. Não, não foi a voz grossa. Não, não foi a barba farta e os 1,85m de altura. Não, não foi filho universitário. Nada disso. Foi quando ele fez café.
A Terra tem sido um lugar difícil de morar. Pessimamente administrado e precisando de manutenção, o planeta se tornará cada vez mais inóspito, até que, daqui a milhões de anos, alguém se perguntará o que aconteceu com os humanos. Avareza será a única resposta correta.
O Brasil tem sido um lugar difícil de morar. Entristece a gente, tira nossas energias, nos transforma em uma geleia amorfa e sem forças. “A crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto”, já dizia o bom e velho Darcy Ribeiro. Atualmente, decidimos ampliar esse conceito e vivemos dentro de um projeto de extermínio. Nem sempre é muito fácil sair da cama.
Hoje não. Hoje os fascistas não venceram.
O café que meu filho fez se misturou com o meu sonho, invadiu um espaço que era só meu e me acordou pela manhã. A luz natural que entrava pela janela não foi suficiente para clareza de detalhes. São sempre as pequenas coisas que me levam de volta ao meu eixo.
Crônica publicada
Revista Pessoa em 06/04/2021
Edições Mombak
Lisboa
ISSN 21791929