Nunca liguei muito para datas e acho mesmo que o bom é comemorar com afetos, tanto faz em que dia cai essa oportunidade (ou desculpa). Algumas datas, mesmo comerciais, me pegam pela boca do estômago, entretanto.
Nesse Dia das Mães fui mãe de filho, namorada de filho, filha de pai, mas não fui filha de mãe. Desde 10 de julho de 2017, não sou mais filha da mãe. Somos só nós dois: sou mãe do filho. Repasso mentalmente a trajetória que nos trouxe até aqui e me emociono. E me orgulho.
Meu pai merece honrarias no dia, mas tento levar minha vida sem crises de identidade ou meias verdades. Somos o que somos. E ele é pai.
Saber quem somos não é uma lei da física. “Somos o que somos” não é determinista ou conformista. Podemos mudar. E continuar a saber quem somos. A metamorfose ambulante, isso aí. Toca Raul, cara.
Fui no show do Kiss. A última turnê talvez. Já ameaçaram isso antes. No final, alguém gritou “toca Raul”*. Eu ri.
Já vivi muito como metamorfose ambulante. Hoje tenho a sorte de um amor tranquilo e a paz, finalmente, após mais de cinco décadas tortuosas e turbulentas, chegou. Você pode chamar de velhice, se quiser. Não ligo.
Às vezes me olho no espelho e penso que minha mãe não me reconheceria na rua, caso voltasse dos mortos e resolvesse passear em São Paulo. Estou, entretanto, mais fisicamente parecida com ela a cada dia. Talvez buscando algum distanciamento, pintei o cabelo de vermelho. Ruiva Drogasil, última moda da psicanálise.
Lembro de quando, já no hospital de onde ela nunca mais saiu, mostrei as aquarelas de uma exposição que eu ainda ia montar no mês seguinte. Nas aquarelas, alguns dizeres escritos.
Ela lia, lacrimejava.
Olhava pra mim e sorria.
Não sabia o que dizer, então calou.
Lia sobre uma vida passada, mas não esquecida. Lia quase como quem olhava a um espelho.
Os espelhos mentem: teimam em mostrar uma imagem bidimensional e invertida da realidade.
Foi assim, como em um espelho, que me vi nela. Vi meu passado e meu futuro. Fantasia cruel, essa do futuro antecipado.
Nesse momento, lembrei de um passado remoto. Nem tão remoto, nem tão passado. Mas, enfim, lembrei. Lembrei também por que queria esquecer.
Olhei de novo pra ela e sorri compulsivamente.
Finalmente, ela me disse algo: you go, girl.
Eu estou indo, mãe.
* Obs.: Meus pais biológicos (Eduardo Prado e Elvira Vigna) são citados na biografia de Raul Seixas, Não diga que a canção está perdida, de Jotabê Medeiros (Todavia, 2019). As revistas A Pomba, Pipocas e 2001, mencionadas no livro, encontram-se quase na íntegra neste endereço.
Crônica publicada no Rascunho em 12/05/2022