Crônica "Overkill", publicada no Rascunho em 02/05/2024. Ilustração: Eduardo Mussi. https://rascunho.com.br/cronistas/carolina-vigna/overkill/

Às vezes acho que não tenho salvação. Que minha distração um dia terá uma crise aguda dentro dessa condição crônica e eu vou, sem querer, me mudar para a Patagônia só porque esqueci para onde ia.

Não tenho, ainda, preocupação com Alzheimer porque sempre fui assim, desde criança. Não é algo que eu possa sequer dizer que piorou. Acho mesmo que estou melhor e mais atenta hoje do que já fui. E digo mais, minha mãe era pior. Então, eu culpo a genética.

Moro do lado do metrô, saio pouco de carro. O estacionamento não tem vaga demarcada. Por mais vezes do que eu gostaria de admitir, precisei caminhar por vários andares até achar o carro.

Botei o café para fazer e fui regar plantas. Esqueci do café. Botei água na caneca, no micro-ondas, para fazer chá e fui guardar o regador. Esqueci da água e não ouvi o apito desesperado, solitário e carente do micro-ondas. Pensei ah seria bom um café agora.

Recebi um e-mail importante. Li com toda atenção. Fui pegar o segundo café, pensando o que responder. Respondi na minha mente. Esqueci de responder o e-mail. E ainda fiquei surpresa quando encontrei a pessoa e ela me perguntou sobre o e-mail. Como assim, você não tem poderes mediúnicos? Que chato, né.

Tiro a roupa da máquina de lavar. Nos bolsos, amassados e molhados, vários saquinhos plásticos de cachorro. Nina me olha com reprovação.

Nina Simone e eu vamos aos correios. Encontramos uma amiga e seus três whippets no caminho. Decidimos, então, tomar um café na esquina. A conversa foi ótima, mas voltei para casa com o envelope.

Vou na farmácia comprar repelente. Volto com band-aid, condicionador e novalgina. Agora preciso sair para comprar repelente.

Agradeço profundamente ao meu banco, que me avisa “você já pagou essa conta” e por não colocar o adendo “sua anta”. Obrigada, tecnologia bancária.

Compro um livro na pré-venda. Demora a chegar. O lançamento acontece. Eu vou. Compro o livro. O da pré-venda chega.

Marco um almoço com uma amiga. Anoto na agenda o dia e a hora. A hora: meio-dia. Esqueço do que marquei. Chego às 11h. Mando quatro mensagens para a amiga perguntando por ela. Ela, educadíssima, finíssima, gentilíssima, elegantíssima, pede desculpas e diz que infelizmente só vai chegar ao meio-dia, se eu poderia esperar. Digo que sim, que espero. Abro a agenda e fico em silêncio olhando para o evento que começa meio-dia.

Não vou nem falar sobre senhas, logins e quetais. Como diz filho, isso já é overkill.

 

Crônica “Overkill”, publicada no Rascunho em 02/05/2024. Ilustração: Eduardo Mussi.