Crônica "Vai ler ou não?", publicada no Rascunho em 25/07/2024. Ilustração: Bruno Schier. https://rascunho.com.br/cronistas/carolina-vigna/vai-ler-ou-nao/

Descubro que uma livraria colocou o Kafkianas, da minha mãe, na seção de biografias. Ela teria achado isso divertidíssimo.

Minha mãe se isolava para escrever. Passava meses em algum lugar, cenário de um próximo livro, sem comunicação, escrevendo, escrevendo.

Eu tenho um sonho recorrente com ela, onde ela não morreu e de repente aparece. E, sem entender o meu espanto, me entrega o manuscrito e pergunta daquele jeito seco-elvira-de-ser: “e aí, vai ler ou não?”. O que, na verdade, já é o meu cérebro fazendo uma edição afetiva. Ela certamente teria terminado a pergunta com um palavrão. “E aí, vai ler ou não, porra?”. No sonho, paro tudo o que estou fazendo e vou ler, obviamente.

Antes, muito antes de sua última internação, lá pelas tantas, ela me entrega uma prancheta com uns papéis de rascunho e uma caneta bic e diz: “estou morrendo, anota aí”. E então ela me disse tudo o que queria que eu fizesse, com suas redes sociais, com seu site, com seu e-mail, com os seus livros, quando o cachorro morresse, com tudo.

Assim mesmo, sem introdução.

Minha mãe era uma pessoa sem um prefaciozinho, uma apresentaçãozinha, nada.

Não fazia concessões. A nada. A ninguém.

Minha mãe era, também e principalmente, uma pessoa sem glossário, índice, palavras-chave, resumo, sumário. Era uma pessoa não-ABNT.

Não lembro de minha mãe ter, jamais em sua vida, tirado férias.

Quando viajava, era sempre a trabalho de alguma maneira. Ou estava trabalhando, ou estava pensando em trabalho, ou estava planejando o próximo trabalho.

Ela achava que fazer turismo era um ato predatório, arrogante e covarde. Talvez ela tivesse razão.

É possível conhecer lugares diferentes com um olhar respeitoso, curioso e interessado?

Já passei de meio século sem saber se sou ou não uma pessoa horrorosa por fazer turismo de vez em quando. Tudo bem, estou acostumada a incertezas.

Eu, por outro lado, adoro férias. Pode não parecer, mas adoro.

Deitar no sofá com a Nina para ver um filme ou ler um livro.

Sem hora para levantar.

Sem despertador para tocar.

Sem aluno para atender.

Sem reunião para cansar.

Sem atenção para fingir.

As minhas curtas férias acabaram e, com esse término traumático, vão-se também as horas de sofá e aconchego com Nina.

Nina Simone está inconsolável.

 

Crônica publicada no Rascunho em 25/07/2024. Ilustração: Bruno Schier.