Já houve um tempo em que eu conversava online. Sim, já fiz essa bobagem. Hoje, das redes sociais, leio coisas bacanas no Substack e vejo vídeos de tinta e de cachorros no Instagram. O resto, mal olho. Desenvolvi uma imensa preguiça dessa tal conexão com outros humanos. Especificamente, dos humanos aleatórios desconhecidos.
Isso, naturalmente, vale também para a realidade offline.
Nina é um ímã de maluco.
As pessoas acham que o fato de você estar com um cachorro é permissão para puxar conversa sobre cachorros, o clima, política, economia, urbanismo, ecologia. Isso também acontece quando você tem um bebê humano, mas já passei, tem tempo, dessa fase.
Nina e eu caminhando na rua. Do nada, absolutamente saído do éter, um senhor compartilha a informação de que a filha dele tem um cachorro parecido e que, portanto (?!), eu também devo ser médica. Tudo o que ele queria, obviamente, era contar para alguém que tem uma filha médica. Sorri amarelo e fugi, poupando o senhor da minha opinião sobre médicos, de uma forma geral.
Entramos no parque. Um doido vem na minha direção e grita “animais têm alma sim!”. Concordei, é claro. E fomos na direção oposta ao doido e ao lugar para onde eu queria ir. Tem horas que é melhor recalcular a rota, já nos ensinou o GPS.
Sentamos em um banco do parque. Quer dizer, eu sentei no banco, Nina deitou no chão. Uma senhora estaciona do nosso lado. E, depois de fazer cafuné na Nina por uns bons cinco minutos, me diz que ela deveria estar de focinheira. A vontade que me deu de dizer quem eu acho que deveria estar de focinheira, minha gente, nem conto.
Faz um solzinho bem agradável, Nina se estica para pegar um bronze. Uma mulher passa pela gente, faz uma parada e dá a volta só para me dizer que sol é cancerígeno, que eu deveria cuidar melhor do cachorro que está no sol. Colega, são 7h da manhã. Vai tomar um café. Ou cicuta, sei lá.
Nina está tranquila e eu só preciso estar no trabalho duas horas depois. Pego o Kindle. Imediatamente brota do meu lado um ser humano para me contar atrocidades sobre o Jeff Bezos. Não precisa, amigo. Eu também não gosto dele. Mas gosto do meu Kindle. Me deixa em paz, pelamordedeus. O cidadão continua. Quer determinar onde eu, uma pessoa que ele nunca viu na vida, pode ou não ler ebooks.
Passa uma drag queen de patins e som alto. A música me parece horrível e me incomoda, mas Nina claramente adora a moça. Deve ter algum conteúdo melódico incrível acima de 20.000 Hz, que não sou capaz de ouvir, no funk carioca.
Vem na minha direção um grupo de quatro pessoas com camisetas uniformizadas, onde se lê “Deus é forte”. Eu ainda tenho tempo, mas decidi que esse era o sinal para voltar para casa. Como eu não tenho uma camiseta bacana dessas com “Cérbero é top”, fugi.
Nem todo humano, mas sempre um humano.
De nada adianta toda a minha apresentação mal-encarada e poucos-amigos.
Eu culpo a Nina e essa carinha fofa e simpática dela.
Aposto que se eu morasse com um dobermann, nada disso acontecia.
Crônica “Nem todo humano“, publicada em 27/03/2025 no Rascunho. Ilustração: Ilustração: Conde Baltazar