A revista que fala a sua língua faz 10 anos. E daí?

No aniversário de 10 anos da Pessoa, escritores, editores e críticos literários fazem um balanço da sua relação com a revista e do diálogo no campo literário entre os países de língua portuguesa. Sua editora conta o que virá a seguir

Matéria de Guilherme Magalhães

Íntegra: https://revistapessoa.com/artigo/3057/a-revista-que-fala-a-sua-lingua-faz-10-anos.-e-dai

Trechos:

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Ainda que a historiografia da literatura luso-brasileira tivesse registrado iniciativas semelhantes, o lançamento da Pessoa, a revista, naquele ano, proporcionou aos artesãos da língua portuguesa esse palco ausente na cena cultural da atualidade de uma comunidade de quase 290 milhões de pessoas em 11 países.

Dez anos, centenas de autores e milhares de textos depois, a revista inaugura sua próxima década com planos de ampliar o site para outras áreas do pensamento sem abandonar o espaço da literatura em prosa e verso que revelou ou projetou nomes da ficção em língua portuguesa.

“O tempo agora, de outro embate civilizacional, pede uma nova forma de enfrentar o mundo”, diz Mirna Queiroz, diretora editorial e criadora da Pessoa. “Naturalmente, a revista ganhará uma dimensão mais política e filosófica, sem jamais abandonar o literário, na tentativa de contribuir com um pensamento crítico que aponte saídas para velhas e novas urgências.”

Em um eco dos multifacetados heterônimos do poeta, Pessoa desde o início equilibrou seções de ficção e poesia com reportagens, ensaios e pensatas, de autores que vão do Brasil a Timor-Leste, de Portugal a Angola, de Cabo Verde a Moçambique.

“A pluralidade, claramente, é outra caraterística pessoana que pretendi reproduzir. A revista é polifônica, sempre buscou captar as mais diversas tendências do panorama literário e dialogar com os mais diferentes perfis de leitores”, ressalta Mirna.

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A escritora Carolina Vigna, colunista da Pessoa, enxerga aí um certo heroísmo. “Por um lado, eu fico triste que a gente dependa desses heróis, a Mirna, o Rogério (Pereira, editor do jornal Rascunho, que completou 20 anos em 2020). A gente não é nada, mas que bom que esses heróis existem, pegaram essa luta para si. Eu não faço essa luta, não faço um vigésimo do esforço para manter uma vida literária em português existente no Brasil.”

Mirna, por outro lado, se vê “mais como triste figura do que heroína”. “São muitas as pessoas que trabalham com literatura por pura teimosia. Ou fazemos literatura apesar de toda a precariedade ou aceitamos a exclusão do sistema literário.”

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Pontes em um espaço multilinguístico

Expor e conectar a produção de tantas latitudes e longitudes é um desafio que a própria Mirna reconhece. Ao citar o Timor-Leste, por exemplo, ela lembra do escritor Luís Cardoso de Noronha. “Na ficção, ele é o autor da diáspora de maior projeção, que publica desde a década de 90 até os dias atuais. A partir da independência, há um esforço para a construção de um sistema literário, com autoria em português e em outras línguas, principalmente o tétum”, diz, referindo-se ao outro idioma oficial do país do Sudeste Asiático.

O tétum é a língua mais usada pelos timorenses desde que os indonésios proibiram o português durante a ocupação que se deu entre o fim da colonização de Lisboa e a independência definitiva do Timor, em 2002.

Por isso mesmo, o termo “literatura lusófona não reflete a complexidade da comunidade dos países de língua portuguesa”, afirma Mirna. “São muitas literaturas, num espaço multilinguístico. Mesmo que o escritor se expresse em português, tem um contato com outra ou outras línguas nacionais que penetra na literatura dele.”

Ao conceber a Pessoa, Mirna pensava em um projeto de ao menos cinco anos. “Acho que é o mínimo para refletir uma produção de uma certa época.” Surpresa, ou não, os cinco viraram dez. No meio do caminho, parcerias importantes ajudaram a dar fôlego à empreitada.

Uma delas foi com a revista digital Words Without Borders, que, nas palavras do seu editor, Eric Becker, “visa trazer a literatura internacional aos leitores de língua inglesa, principalmente os americanos”.

Foi no âmbito da parceria com a Words Without Borders que a Pessoa publicou, em 2017, um conto da escritora chinesa Can Xue, indicada dois anos depois ao International Booker Prize pelo romance “Love in the new millennium”.

“O nosso objectivo é publicar cedo (alguns diriam “descobrir”, mas é uma terminologia que me soa demasiado colonial) escritores do mundo inteiro, abrindo sua escrita a um público americano, com a ideia de que depois irão conseguir ter seus livros traduzidos e publicados por editoras de língua inglesa.”

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Os norte-americanos ganharam a sua versão em inglês no primeiro evento do Boston Book Festival dedicado à literatura brasileira, em 2015. Até em árabe a Pessoa botou para circular escritores como Milton Hatoum, Raduan Nassar, Ana Miranda, Maria Valéria Rezende e Marcelo Maluf.  O lançamento foi um dos destaques do Kalima – projeto emirati de apoio à tradução de línguas estrangeiras para o árabe, na Feira do Livro de Abu Dhabi, em 2019.

Mais recentemente, a parceria com o LCB diplomatique, portal literário do Colóquio de Literatura Berlim, contribuiu para expandir os horizontes da Pessoa, com publicações de crônicas como a da escritora cabo-verdiana Dina Salústio e do poeta haitiano-canadense Rodney Saint-Éloi.

Quando pensava em encerrar a revista, e a ideia lhe ocorreu em mais de uma ocasião, Mirna colocava na balança tanto questões práticas e financeiras como de uma certa responsabilidade para com a criatura que criou.

“Não queria simplesmente apagar um acervo de dez anos, e o trabalho para passar esse bastão não seria pequeno nem indolor”, diz ela. “A revista faz sentido para cerca de 30 a 35 mil leitores por mês e para uma comunidade literária que encontra na revista um canal de expressão. Ela pretende captar e capturar o contemporâneo, dar escuta a novas vozes, não há espaço na grande imprensa para todas essas pessoas, ou há por muito tempo para os mesmos”, opina. “As revistas independentes contribuem com um processo de oxigenação. Dá uma enorme satisfação ver depois nomes cooptados ou ideias reproduzidas pelos grandões”.

O reconhecimento institucional com o Prêmio IPL – Retratos da Leitura que a revista ganhou no ano passado deu ânimo. O sinal definitivo para sua tomada de decisão veio com o convite de um amigo para criar um espaço cultural em Lisboa. Mirna antecipa que, se a pandemia der trégua, a inauguração, prevista inicialmente para abril, será em setembro.

“Depois de dez anos, e no cenário atual, o projeto morreria ou partiria para um novo desafio. Vamos finalmente, de alguma forma, ganhar a rua. Nasce a Casa Mombak, um lugar de mediação entre as ideias que circulam na revista e o público. Sempre digo que a revista Pessoa é uma roda que chama para a conversa. Essa roda agora ganha concretude e segue com o seu objetivo de alargar o debate.”

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A minha mãe [Elvira Vigna] falava da Pessoa como sendo justamente um lugar de uma riqueza plural maravilhosa, ela se referia à Pessoa com esses termos. E eu concordo com essa análise, essa é a grande beleza da Pessoa: ela se permite ser plural, dar voz a vozes muito diferentes, e sem com isso perder uma certa identidade. É uma medida difícil.

Carolina Vigna, escritora e colunista da Pessoa

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A Pessoa é um grande farol. Ao longo desses dez anos continua sendo o que se propôs a ser desde o início, manteve a chama acesa, um lugar onde a língua portuguesa se encontra e onde encontra os leitores.

Marianna Teixeira Soares, agente literária

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Publicado em 04 de julho de 2020.

Revista Pessoa
ISSN 21791929
Lisboa