O PERÍODO

Estamos agora no Norte da Europa, em Flandres, durante o século XV, onde acontece o Renascimento flamengo. Não é Renascimento florentino, é algo com uma identidade toda própria. Esta região foi absurdamente rica do século XIII até o XVI, por causa do comércio marítimo, e tinha uma marinha mercante muito poderosa. Suas principais cidades eram Bruxelas, Antuérpia, Gent e Brugge.

São católicos mas no século XVI convertem-se protestantes. É um tipo de catolicismo muito diferente do italiano e é ligado aos nórdicos, aos bárbaros. A religião é mais mística, mais contida. Trata-se de uma cultura radicalmente baseada no mundo burguês.

Em Flandres acontece o gótico tardio, o gótico flamboyant, internacional.

A arte era a mais analítica possível (o Renascimento florentino é o mais sintético possível). Na Itália a realidade está na alegoria, na interpretação mais filosófica. Em Flandres há uma imersão do aqui e agora, a arte é antropológica.

JAN VAN EYCK

Karel van Mander escreveu o livro dos artistas nórdicos (Het schilder-boeck, 1603), inspirando-se no estilo de biografia de Vasari (1550). Neste livro, Jan Van Eyck é retratado como um grande alquimista, aquele que transmutou a matéria, por causa de sua técnica. Os artistas até bem pouco tempo atrás preparavam suas tintas e materiais, não os compravam em tubos ou em papelarias. Era necessário conhecimento em química além da técnica artística em si. Antes dos irmãos Van Eyck, o meio de solução era o ovo (têmpera) , que secava muito depressa. Ao dissolver seus pigmentos em óleo, os Van Eyck conseguiram manipulá-los por mais tempo e com maior precisão.

“Aqui  na verdade não há paralelo com os mestres do início da Renascença na Itália, que nunca abandonaram as tradições da arte grega e romana. Lembramos que os antigos ‘idealizaram’ a figura humana em obras como a Vênus de Milo ou o Apolo de Belvedere. Jan van Eyck não teria nada disso. Ele deve ter posto modelos nus à sua frente e pintou-os tão fielmente, que gerações mais tardias ficaram um tanto chocadas com tanta honestidade. Não que o artista não tenha olhos para a beleza.” – GOMBRICH, E. H.; História da Arte; tradução Álvaro Cabral, Rio de Janeiro: LTC, 2008.

A OBRA

A obra retrata um rico casal italiano, Giovanni Arnolfini e sua esposa Giovanna Cenami. Arnolfini já era um rico comerciante de tecidos, da cidade de Lucca (perto de Florença), antes de mudar-se para Brugge com o propósito de expandir os negócios da família. A mudança foi um sucesso e o casal incorporou os valores nórdicos.

Os esposos Arnolfini (também conhecido como O casal Arnolfini) é um retrato encomendado. A obra mostra diversos elementos de afirmação de riqueza e importância econômico-social, além do fato de que encomendar um quadro ao grande Van Eyck por si só já era um importante símbolo de prestígio.

A riqueza de detalhes na obra é lendária e deve-se muito à formação de Van Eyck, que, além de pintor, era miniaturista e iluminador de manuscritos . Os pintores holandeses usavam lentes de aumento em seu ofício e Van Eyck era famoso por seu pincel de cerda única, o que só faz aumentar o seu mérito. Não por acaso o microscópio nasce na Holanda.

A obra retrata um quarto de dormir, o mundo privado. De acordo com a ética do catolicismo nórdico é pecado mortal ostentar riqueza em público (base para Lutero, por exemplo). O universo da riqueza e do luxo era restrito ao mundo privado.

ELEMENTOS ICONOGRÁFICOS

Citações encrustadas da Paixão de Cristo na borda do espelho. A imagem do espelho inclui Van Eyck pintando o casal. “Pela primeira vez na história, o artista tornou-se a testemunha ocular perfeita, na mais verdadeira acepção da palavra.” [GOMBRICH, E. H.]

Espelho/vidro era caríssimo e é um importante símbolo de riqueza.

Assinatura: “Johannes de eyck fuit hic” (Jan van Eyck esteve aqui). Segundo Gombrich, a assinatura pode ter tido uma função de testemunho de um ato solene.

O azul era de lápis lazuli, outro símbolo de ostentação da riqueza do casal.

O penteado de Giovanna Cenami era típico da Borgogna e tinha uma armação por dentro para impedir o véu de cair nos olhos. Assim como os tamancos, mostra a adoção dos valores nórdicos pelo casal.

Vermelho era símbolo de nobreza. O pigmento vermelho custava mais que ouro. Os flamengos são os primeiros piratas do Brasil (pau-brasil), justamente em busca deste pigmento.

O professor Adelino José da Silva d’Azevedo  afirma que é do cinabre que se origina a palavra brasil. Kínnabar era uma palavra celta que, no comércio com os fenícios, designava o tom vermelho de qualquer material. Forma-se da raiz kínn – que traduz a idéia de metálico e de rubro; e da partícula bar – sobre, em cima de, superior. Uma característica do celta era a próclise das partículas, em oposição à ênclise grega. Ou seja, o celta punha as partículas no fim da palavra, ao contrário dos gregos, que a preferiam no meio. Assim, kínnabar corresponde ao barcino, brakino, breazail. Portanto, o cinabre dá nome ao pau-brasil que, por sua vez, dá nome ao país.

O fino anel e o gesto de Giovanni Arnolfini querem passar a mensagem “não sou grosseiro” (não era mesmo). Os Arnolfini eram aristocratas burgueses, ganharam dinheiro com o comércio. Justamente por não serem nobres, precisavam afirmar-se como não sendo rudes e sim detentores de refino e cultura.

A maçã tem um significado religioso. De acordo com a mitologia católica, os homens eram desagregados, filhos de Eva, expulsa do paraíso por morder a maçã do pecado. A maçã traz, portanto, a lembrança: “lembra-te que és mortal, que és pecado”.

Não havia laranjas em Flandres, típicas da Sicília e da Espanha. Aqui as limas eram hindus, importadas da Índia (fruta exótica). As frutas eram para ser vistas, não para ser comidas. As laranjas eram importadas e envernizadas e deixadas pela casa como símbolo de riqueza.

Os tamancos, bem como suas vestimentas de uma forma geral, mostram claramente a adaptação do casal italiano emigrante aos costumes flamengos.

Os Arnolfini eram comerciantes de tecido e portanto suas roupas não apenas ostentam riqueza como também narram sua história.

Mãos alongadas, típicas do estilo gótico.

Até o cachorrinho ostenta riqueza (não é um cão de caça).

CONCLUSÃO

O Renascimento flamengo não é subserviente a significados simbólicos e/ou sobrenaturais. Há uma busca pelo retrato, pelo naturalismo. O mundo retratado é real e inclui objetos cotidianos, como mobiliário, roupas e animais domésticos, ainda que providos de significado e propósito. Ao mesmo tempo em que podemos perceber a influência direta do Helenismo em Flandres, é Flandres que influenciará o mundo das artes com seus retratos quase antropológicos e sua técnica revolucionária.

 

BIBLIOGRAFIA

BECKETT, Wendy; História da Pintura. São Paulo: Ática, 1997.

CANTARINO, Geraldo; Uma ilha chamada Brasil: o paraíso irlandês no passado brasileiro. Rio de Janeiro: Mauad, 2004.

CAROL, STRICKLAND e BOSWELL, John. Arte Comentada – Da Pré-História ao Pós-Moderno. Rio de Janeiro: Ediouro Publicações, 1999.

GOMBRICH, E. H.; História da Arte; tradução Álvaro Cabral, Rio de Janeiro: LTC, 2008.