Para vocês não ficarem aí achando que o meu perfume predileto é naftalina, a coluna deste mês é sobre uma artista jovem e contemporânea nascida em 1982, a Audrey Kawasaki.

Em tempo: não use moderno para se referir a artistas do nosso tempo. O termo diz respeito ao Modernismo, movimento que terminou mais ou menos na metade do século passado.

Toda obra possui várias relações espaço-tempo, tanto em si quanto de sua época e sociedade. O cineasta francês Robert Bresson (1901-1999), por exemplo, é famoso por usar espaços desconexos, sem uma relação direta entre si. Assim como em Bresson, o espaço em Kawasaki também é fragmentado, mas ela leva este conceito um passo além e a personagem também é desconexa e, ambos são, simultaneamente, auto-suficientes o bastante para sustentar sozinhos a narrativa. Ou seja, os elementos em Kawasaki são desconexos e fragmentados. Somos todos.

A obra de Kawasaki é uma dúvida entre o erótico e o inocente, uma mistura entre a ilustração e a pintura, uma fusão entre ficção e realidade. Kawasaki é um espelho do nosso tempo. É muito difícil um artista conseguir refletir o seu próprio momento e, ao mesmo tempo, emocionar pessoas. É necessário manter uma sensibilidade extrema sem perder o senso crítico, mesmo que não estejamos – e não estamos – falando de uma arte de protesto ou um ato de resistência.

Esta dubiedade que tão bem retrata Kawasaki é nossa, de nosso tempo. Pela primeira vez na história, sabemos que a seriedade e o respeito não terminam na primeira fazendinha virtual. É esta geração – e nenhuma outra – que consegue trabalhar com o MSN aberto, mp3 a toda, falando no Skype e com novecentas janelas abertas. Curiosamente, vejo muitos tratando este comportamento como problema quando eu acho que é a solução. Nós somos muitos, complexos e ricos.

Assim como acontece com o design ou qualquer outra coisa, a pintura é fruto de uma seqüência de escolhas. Ao escolher determinada cor, enquadramento, traço e elementos, o artista conta uma história, um texto. Conseqüentemente, a imagem tem uma conotação, que varia de acordo com o contexto histórico-social tanto do artista e da obra quanto do fruidor (nome que se dá àquele que frui, que usufrui, determinado conteúdo). O fruidor empresta à obra o seu próprio espaço-tempo, através da sua interpretação. Daí surgem todos aqueles chavões do tipo “a beleza está nos olhos de quem a vê” e outras frases de efeito igualmente bregas.

O design é também objetivo e subjetivo, e a construção de uma linguagem que reflete a si própria e o mundo. O webdesign é, se não a primeira, a melhor sucedida linguagem que assimila este papel do fruidor em sua própria estrutura, modificando-se e evoluindo enquanto existe, em tempo real. O webdesign é a única linguagem que modifica a sua estrutura narrativa – e não apenas a forma e/ou conteúdo – durante a conversação. Este fato já é mais que suficiente para definir o webdesign como único e portanto dificílimo. O espaço-tempo no webdesign, portanto, é volátil e etéreo.

Kawasaki entende este espaço-tempo dúbio que se ajusta conforme existe e, por isso mesmo, existe. Ela consegue unir com perfeição e harmonia a criação da imagem e do espaço como reflexo das questões deste mesmo tempo. Em termos técnicos ela também ousa: usa madeira crua como suporte e mistura a ilustração com a pintura, deixando o traço absolutamente aparente.

Ela não faz um julgamento de valores. Não vivemos em um tempo onde julgamentos moralizantes sejam possíveis (felizmente). Nem sempre observamos isso, mas, aos trancos e barrancos, a humanidade caminha sim para uma maior tolerância, e a internet exerce um papel fundamental nesta evolução. Vivemos um tempo que se permite questionar e que admite o dúbio e o diferente. Não precisamos mais ter certezas. Este é o discurso de Kawasaki. E isso é ótimo.

Provavelmente Kawasaki será vista no futuro com uma estranha curiosidade, com um olhar quase sociológico a respeito das pessoas e dos costumes de nossa época. O fato é que será vista e isso já diz muito. André Malraux (1901-1976) afirmou que a arte é a única coisa que resiste à morte. Ele tem razão.

 

VIGNA-MARÚ, Carolina. Audrey Kawasaki. Revista Web Design, Rio de Janeiro, p. 44 – 44, 01 nov. 2010.