Michelangelo Merisi da Caravaggio 
(Michelangelo Merisi, nascido na cidade de Caravaggio)
1571-1610

Caravaggio foi um auto-didata, não freqüentou academias, viveu de maneira pouco regrada, não teve alunos diretos, mas, depois de sua morte, acontece o fenômeno europeu “caravaggismo”.

Caravaggio viveu no período barroco, de reação da igreja católica aos protestantes e ao maneirismo sem regras que veio antes. O início do período é marcado com o Concílio de Trento (1543-1563), promovido pelo papa Paulo III Farnese em Trento, no norte da Itália. A cidade não foi escolhida por acaso: o norte era cheio de reformistas protestantes, calvinistas, luteranos, etc. A igreja católica propôs então um conjunto de ações e procedimentos que levaram à contra-reforma (a reforma, no caso, era o protestantismo), incluindo a renovação dos rituais, o que leva ao nascimento da missa-espetáculo. Tudo no barroco é muito teatral.

A igreja barroca romana é forrada de imagens, quadros, esculturas, literatura (sermões), música, arquitetura. É o excesso de informações, a oposição à idéia protestante do silêncio e da sobriedade. A missa católica é o conjunto de todas as artes para causar um efeito emocional sobre o espectador, é o teatro das emoções. A fórmula é “muovere gli affetti” (mover os afetos, causar um abalo, a presença do sagrado deve ser sentida emocionalmente e não pensada racionalmente). O Barroco se opõe ao Maneirismo. O Barroco prega uma unidade (com regras) de todas as artes. É um discurso moralizante, de que as paixões são para ser vividas na missa e não na vida.

Caravaggio foi um homem do seu tempo. Ele não apenas viveu o Barroco mas viveu uma vida barroca. Sua biografia é repleta de grandes cenas, dramas e momentos de grandes emoções. Gombrich o descreve como um “homem de temperamento impetuoso e irado, extremamente suscetível à menor ofensa e até capaz de apunhalar um desafeto.”

A Conversão de São Paulo

A Conversão de São Paulo teve duas versões. A primeira foi recusada, considerada escandalosa demais para ser mostrada em público. Os quadros contam a estória de Saulo, fariseu (precursores do judaísmo rabínico) e soldado romano de alta patente. Saulo era da elite, falava, lia e escrevia fluentemente em grego e latim. Chegou a perseguir cristãos quando ainda soldado. A caminho de Damasco, uma forte luz o cega e Saulo cai do cavalo. Permanece dias em transe e quando finalmente alcança a cura, converte-se ao cristianismo (foi a luz de Cristo). Muda, então, seu nome para Paulo e retorna como São Paulo. Assim como na maioria de suas obras, Caravaggio escolhe o momento de maior drama e tensão para retratar a estória: a queda do cavalo.

Conversione di San Paolo, 1600

Conversione di San Paolo, 1600

A descrição mais antiga de Paulo é a do livro apócrifo “Atos de Paulo e Tecla” (séc. II), segundo o qual ele era uma pessoa de baixa estatura, de cabeça calva e com pernas arqueadas. As principais características físicas da hagiografia de São Paulo desaparecem. A tradicional calvície e barba comprida (em contraste com São Pedro, que é normalmente representado com uma barba curta e encaracolada) não aparecem no quadro.

Caravaggio subverte completamente os elementos iconográficos de São Paulo entre as primeira e segunda versões dA Conversão de São Paulo. A vestimenta de Saulo sofre uma modificação bastante relevante: em sua primeira versão, ele ainda é romano e porta inclusive o elmo que aparece caído à esquerda da primeira versão do quadro. Na segunda versão, Saulo aparece mais vestido do que na primeira e menos caracterizado como soldado romano, quase como uma versão mais moralista da personagem. O manto vermelho, a espada e as pernas tortas, entretanto, são mantidos. O cavalo muda de posição, antes de frente e agora visto por trás; antes rebelde e indomado, agora quase estático. Em ambas, o escudeiro que o acompanha tenta ajudá-lo, mas a ação é também radicalmente diferente: no primeiro quadro ele tenta afastar o anjo e Jesus Cristo com uma lança, no segundo ele se vira em direção a Saulo. A posição de Saulo também se altera: na primeira versão do quadro, ele leva as mãos aos olhos cegos pelo clarão, mas ainda ergue-se do chão; na segunda, Saulo aparece completamente derrubado no chão e já em súplica. Na segunda versão do quadro, Caravaggio substitui a presença divina pela luz que incide sobre o corpo de Saulo. A luz na primeira versão também tem como alvo principal Saulo, mas é distribuída de forma menos dramática. A segunda versão é mais fiel à estória, que relata uma luz intensa mas sem aparições divinas. Apesar dos Atos dos Apóstolos não mencionar o cavalo, este tornou-se um ícone indispensável para esta estória durante a Renascença e manteve-se presente até hoje. Caravaggio também simplifica a composição, retirando elementos como o elmo, o escudo, Jesus Cristo e o anjo. O primeiro quadro data de 1600-1601 e o segundo de 1601. Os quadros parecem retratar a mesma cena com instantes de diferença, sendo a segunda versão segundos após a queda, quando o cavalo já se aquietou e Saulo chegou ao chão.

Essa mudança de linguagem é tão significativa que biógrafos de Caravaggio, como Howard Hibbard, afirmam que o crescimento e o aprimoramento técnico-artístico mais dramático de Caravaggio aconteceu justamente no ano seguinte ao trabalho da Capela Cerasi.

 

Conversione di San Paolo, 1601

Conversione di San Paolo, 1601

A Conversão de São Paulo está na Capela Cerasi e à sua frente está o quadro A Crucificação de São Pedro. Enquanto o primeiro é íntimo e retrata a instante da parada de movimento (a queda), o segundo é público e representa o esforço físico em seu ponto máximo para todos na composição.

São Pedro é preso mas consegue fugir. Jesus aparece para ele e pergunta “Quo Vadis?” e o manda de volta à crucificação, para cumprir o seu destino. Ele então acha que não é digno de ser crucificado como Jesus e pede para ser pendurado na cruz de cabeça para baixo. Naturalmente, uma posição tão peculiar e inusitada como ser crucificado de ponta-cabeça é a mais escolhida pelos artistas para retratar este momento da vida do santo.

O primeiro a pintar a crucificação de São Pedro no momento do levante da cruz foi Michelangelo e, a partir dele, este instante tornou-se iconográfico desta passagem bíblica. Caravaggio usa a figura serpenteada de Michelangelo diversas vezes. Assim como nA Conversão de São Paulo, a cena é reduzida ao essencial, sem o grupo de espectadores presentes nos quadros de Michelangelo, Masaccio, Giordano, etc.

O estilo

Para Caravaggio, a luz é a sua própria fonte. Ela ilumina o que o pintor deseja enfatizar e oculta o que ele deseja ocultar, sem justificar a sua origem para nós – nada de óbvio como uma vela ou o fogo, (…). É o que um dos recentes biógrafos<<7>> de Caravaggio chama ‘a mão divina do artista que traz luz à matéria’. Para Caravaggio, o artista tem um controle absoluto, e assim o que importa é a ilusão resultante, e não as razões técnicas para a ilusão.” [MANGUEL]

Caravaggio usava modelos vivos encontrados entre jovens abandonados, mendigos e prostitutas. Com isso, seus modelos eram extremamente reais e não-idealizados, o famoso “realismo de Caravaggio”. Ele enfrentou muitos problemas por causa deste naturalismo, considerado chocante pelo poder católico vigente.

“Quando Caravaggio concedeu aos pobres de Nápoles um cenário em seus quadros sagrados, não estava somente indo contra os antigos preceitos do Concílio de Trento; estava também dando continuidade à apropriação de um palco público que as pessoas comuns haviam começado, nas ruas das cidades, com a commedia, o carnaval e o Festival dos Bobos, e até com as procissões e os mistérios da Igreja. (…) Para Caravaggio, a misericórdia devia ser praticada entre irmãos, e não a partir das alguras desdenhosas da nobreza eclesiástica ou burguesa; misericórdia era seguir as instruções deixadas por Cristo em Mateus 6, 1-4 (…). Os quadros de Caravaggio permanecem como um lembrete contra a hipocrisia. (…) Os atos de misericórdia praticados nos quadros de Caravaggio se passam entre pessoas reais, com sofrimento real.” [MANGUEL]

“O ‘naturalismo’ de Caravaggio, ou seja, a sua intenção de copiar fielmente a natureza, quer a considerasse feia ou bela, talvez fosse mais devoto do que a ênfase de Carraci sobre a beleza. Caravaggio deve ter lido repetidamente a Bíblia e meditado sobre suas palavras. (…) E fez todo o possível para que as figuras dos textos antigos parecessem muito reais e tangíveis. Até a sua maneira de tratar a luz e a sombra reforçava essa finalidade. A luz não faz o corpo parecer gracioso e macio; é áspera e quase ofuscante no contraste com as sombras profundas. Faz toda a estranha cena destacar-se com uma honestidade intransigente que poucos de seus contemporâneos souberam apreciar, mas que iria ter um efeito decisivo sobre artistas subseqüentes.” [GOMBRICH]

Os fundos negros, abstratos e neutros de Caravaggio são a metafísica do espaço. A tensão e o drama são centralizados na cena. Caravaggio é teatral. A combinação do naturalismo com o espaço metafísico é uma das principais características do estilo de Caravaggio. Ele usa a radicalidade do primeiro plano. Orson Welles diz que Caravaggio inventou o zoom da imagem e o cinema.

Existe um discurso moral neste naturalismo todo, incluindo a “natureza-morta” que surge neste período, que é o de que a passagem do tempo é implacável para todos e que mesmo a mais bela das criaturas apodrece. Portanto, de nada adianta a vaidade. As Vanitas, denúncias da vaidade, usam a iconografia das caveiras com freqüência, como pode ser visto claramente em seus quadros de São Jerônimo.

Para o Barroco católico romano, o sagrado é para ser sentido, não para ser pensado. O sagrado torna-se com Caravaggio sensível, contemporâneo e “realista”. O realismo, entretanto, é um conceito escorregadio e depende da noção de realidade que cada um tem.

 


GOMBRICH, E. H.; História da Arte; tradução Álvaro Cabral, Rio de Janeiro: LTC, 2008.

 http://www.scribd.com/doc/8108951/Caravaggio-Caduta-da-Cavallo

http://en.wikipedia.org/wiki/Acts_of_Paul_and_Thecla#The_narrative_of_the_text

HIBBARD, Howard. Caravaggio. Londres, Thames & Hudson, 1983.

LANGDON, Helen. Caravaggio: A Life. Londres, Chatto & Windus, 1998.

MANGUEL, Alberto. Lendo Imagens – uma história de amor e ódio. São Paulo, Cia das Letras, 2001.