No espelho do meu banheiro tem uma mancha, como se o espelho ou eu estivéssemos nos desfazendo, bem na altura do meu olho direito.
Espelhos são curiosos. Mostram uma imagem bidimensional e invertida da realidade de uma maneira tão convincente que às vezes achamos que somos bidimensionais e invertidos. Invertida talvez eu seja, de fato.
A professora Alecsandra Matias de Oliveira publicou um breve artigo intitulado Através do espelho, no jornal da USP, de que eu gosto muitíssimo. Como é esperado de uma professora das Artes Visuais, ela falou sobre obras importantes nesse contexto. Dentre elas, as minhas queridinhas As meninas, do Diego Velázquez, e O casal Arnolfini, do Jan van Eyck. Por não ser da literatura, a professora não entrou em Alice através do espelho, de quem, talvez, tenha vindo seu título.
A literatura gosta de um espelho. A começar, é óbvio, pelo conto do Machado de Assis. Por falar em “cada cabeça, cada sentença”, volto à minha, no espelho, borrada, manchada, sem o olho direito.
Olho direito que eu sei estar aqui mas não lá.
Pensando em espelhos, o Oscar Wilde em mim saúda o Oscar Wilde em você. Dorian Gray nos fascina e nos assombra em iguais proporções. Assim como deve ter sido para muita gente, O retrato de Dorian Gray foi o meu ponto de entrada para o autor. Adolescente e completamente mesmerizada pela escrita do Wilde, consumi todos os seus livros, em sequência, sem pausa, como uma viciada. Esperei passar alguns anos e repeti a maratona. Claro que sempre existe aquela coisa do afeto da leitura, dessa memória daquele instante mágico, mas, para mim, há algo de eterno em Wilde. Saí emocionada igual.
Temos ainda o espelho que fornece uma imagem que não é reconhecida, que apresenta a desconexão com a realidade, como em A metamorfose de Franz Kafka. Exemplos não nos faltam. O estrangeiro de Albert Camus e O livro do desassossego de Fernando Pessoa e seus espelhos me veem fácil à memória.
Sem, claro, esquecer dos vampiros, que não possuem reflexos em espelhos. Ou, ao menos, assim me parece.
Talvez eu seja uma vampira em formação. Ainda com algum reflexo mas sem nitidez. Não sumi por completo. Ainda.
Abri uma nova exposição aqui em São Paulo. As fotos do vernissage, todas, me mostram uma pessoa que reconheço com dificuldade. É alguém borrado, meio manco, distorcido, faltando o olho direito. Sobram pelancas e rugas. Os cabelos brancos não aparecem, mas estão lá, junto com o olho direito do espelho do meu banheiro.
Crônica “Olho no espelho“, publicada em 17/04/2025 no Rascunho. Ilustração: Ilustração: Thiago Lucas