Crônica "Os ombros de gigantes", publicada no Rascunho em 20/06/2024. Ilustração: Eduardo Mussi. https://rascunho.com.br/cronistas/carolina-vigna/os-ombros-de-gigantes/

A rodinha do meu mouse está doida. Tem horas em que eu giro, carinhosamente devo ressaltar, na direção da palma da mão e, ao invés de descer na página, o cursor sobe. A página volta para o que instituímos como “cima”. Justo o meu mouse, tão bem tratado. Ou, pior ainda, finge que vai e não vai. Ou vai e volta.

Navegar na internet ganhou toda uma nova camada de significação e agora exige um antiemético.

Se fosse na época do mouse bolinha, eu abriria, lavaria a bolinha com detergente, limpava os contatos com cotonete e álcool 70 e tudo voltaria a funcionar por mais meio século. Mas não, é um mouse moderno que não se dá ao desfrute de ter uma bolinha enfiada no seu… no seu… no seu interior inferior central.

Isso está absolutamente me enlouquecendo.

Sim, de todos os males do mundo, sul destruído e inundado, Trump, assassinos de Marielle, PL do estupro, nossa Constituição putrefata, Europa em decomposição, governo paulistano nem tenho adjetivo, guerras… Sim, de todos os males do mundo o que está verdadeiramente me tirando do sério é a rodinha do mouse.

“Ed Motta pediu desculpas por chamar ouvintes de hip hop de ‘burros’”, leio no jornal. Com esse tipo de notícia, no mesmo nível de “Caetano estaciona no Leblon”, fica difícil não focar a atenção na rodinha do mouse e no cursor bêbado. Eu não dou a mínima sobre o que uma pessoa acha sobre os hábitos musicais de outros. Os outros em questão também não deveriam se importar. Não é relevante. Precisamos parar de dar voz aos recalcados e espaço às “pequenas coisas”.

Não faltam citações motivadoras sobre as “pequenas coisas” da vida. Ó, como é bom, ó como devemos valorizar, ó etc. Eu sou do time oposto. Sou do time que se irrita justamente com essas pequenas coisas. O que me tira do Nirvana é o fato de que são essas as que podem ser evitadas.

As grandes coisas não podem ou não devem ser evitadas. O tsunami, o amor, a morte, a tempestade, o Sol, a noite e o dia. As coisas maiores que nós, as forças da natureza, moldam quem somos mas temos muito pouco ou quase nada a dizer a respeito.

Em um dia normal e fora da faixa do acidente, é na peça de lego que pisamos, não é na parede que batemos.

A única questão é como medimos os tamanhos das coisas. Passear com Nina, por exemplo, é um ato gigante. Ouvir música é vital. Não são coisas pequenas da vida. São enormes. Pequeno é fazer imposto de renda. Pequeno é preencher formulário.

Nina, por exemplo, sabe escolher muito bem com o que se importar. Se tem sol. Se tem bola. Se tem grama. Se tem agrado. Se tem cafuné (sempre tem). Nina não preenche formulários.

Sentar com calma, chá e cachorro para ler é a parte mais importante do dia.

Meu primeiro pós-doc foi sobre Morte e vida severina e O rio, do João Cabral de Melo Neto. Comprei a adaptação do Odyr. Imensa.

Não sei ao certo quem são os gigantes de Sir Isaac Newton, mas estou convencida de que pelo menos um deles é um cachorro. Ok, tudo bem, outro foi Galileu Galilei. A frase está no plural. Tem lugar para o cachorro.

 

Crônica publicada no Rascunho em 20/06/2024. Ilustração: Eduardo Mussi.