A cena é típica. Reunião. Sou a única mulher. E, curiosamente, especialista no assunto sobre o qual falo. Tratei disso no meu mestrado, no meu doutorado e nos meus dois pós-doutorados. Consegui ser interrompida em todas as frases que disse, por todos os homens presentes. Toda. Frase. Cada uma delas. E nem dá para fazer a piada de que deve ser algum tipo de recorde. Não é. É o dia a dia de todas nós.
Chego em casa exausta.
Exausta não do longo dia de trabalho. Exausta da humanidade.
Não, mentira. Exausta da parcela masculina hétero cis branca da humanidade. O resto de nós não é nenhuma maravilha, mas ainda tem alguma noção.
Então, para conseguir continuar nesse mundo e porque quem faz sentido é soldado, boto para tocar um homem branco hétero cis e, pior, inglês. Hugh Laurie pode até ser mais conhecido por seu papel de um médico brilhante (ficção) e arrogante (verossímil) mas, para mim, ele é músico.
Não gosto de médicos. Nem os de ficção, nem os inevitáveis da vida real. Não gosto especialmente dos médicos brancos héteros cis.
Nina aprova o Hugh Laurie e deita no meu colo. Ela sabe o que é necessário para que eu não perca o réu primário.
Finjo que sou um homem branco hétero cis — ou minha mãe — e pego uma dose de uísque.
Volta e meia sou acusada de ser parecida com a minha mãe.
Secretamente suspeito que minha mãe era trans. Ela tomava uísque e jogava sinuca. Eu tento, mas jogo muito mal.
A cabeça ainda está naquela mesa. Os machotudo me interrompendo e eu tentando manter a educação. Se arrependimento matasse. Eu devia era ter mandado todos para onde acho que eles nunca deveriam ter saído de.
Que raiva.
É quase meia-noite, Nina, não dá pra sair agora. Sim, eu sei que você é um cachorro, mas você não engana ninguém como cão de guarda. Maior focinho de fofinha. A gente vai ser comida viva.
Mais uma para conta desse dasein mulher que nos enlouquece. Não, não dá para dar uma volta de noite. O medo masculino é perder o celular. O medo feminino é ser assassinada.
Que cansaço do mundo.
Procurando outra coisa, esbarro de novo na mensagem que me conta que R., linda, maravilhosa, queridíssima e namorada de R. gostou do meu drops. Os dois gostaram. O coração enche de alegria. São pessoas importantes para mim. Às vezes tem uns héteros cis que prestam. É raro, mas acontece.
Minha melhor amiga está em Bogotá, o que torna um pouco difícil falar para o que você está fazendo e vamos beber pelamordedeus. Venha correndo com o vinho de emergência.
Sinto falta do acento em para. Pára é muito diferente de para. Meu deus, estou velha o suficiente para reclamar de reformas ortográficas. Só me falta agora ter hábitos de macho velho. Como jogar sinuca ou tomar uísque.
Não, pera.
Não, para.
Não, pára.
Aff.
Crônica “Para parar“, publicada no Rascunho em 14/11/2024. Ilustração: Bruno Schier