Crônica "Terê", publicada no Rascunho em 18/07/2024. Ilustração: Bruno Schier. https://rascunho.com.br/cronistas/carolina-vigna/tere/

Em 2014 ou 15, algo assim, quando descobri a técnica de encáustica, um amigo que estava trabalhando no mesmo ateliê diz que perdeu alguns anos de vida por conta da minha receita da pasta.

Cada artista tem a sua receita. Eu uso três-quartos de cera de abelha derretida, com um-quarto de terebintina aquecida na mistura, na panela. Se for usar em madeira, acrescento um pouco de carnaúba. Se for usar em tela, acrescento um pouco de parafina. No olhômetro mesmo.

O cheiro disso invade até a argamassa do prédio e lá fica por meses. Quase um afresco olfativo. É horrível, eu reconheço.

Hoje em dia, quando preciso fazer a pasta de encáustica, levo um fogareirozinho desses de camping para um lugar a céu aberto.

Terebintina, apesar de ser o perfume que eu mais uso, é, de fato, um pouco presente demais.

Preparo a nova exposição e preciso escolher entre morrer intoxicada pela terebintina ou morrer congelada ao abrir a janela.

Eu nasci e moro num país tropical, abençoado por Deus, bonito por natureza, mas que beleza. Odeio frio. Se é para existir nessa temperatura, quero ganhar em euros. Estou velha demais. As articulações doem, digitar dói, lavar louça dói. É tudo horrível. Odeio frio, odeio.

A nova exposição não é com encáustica. É com monotipia, mas uso óleo e, portanto, terê. O relacionamento é antigo, eu posso chamá-la de terê.

Cometo o erro de passar na frente de um espelho grande. Tenho tinta na roupa, nos braços, nas mãos e nos óculos. Estou descabelada. Não lembro quando comi.

O Mihaly Csikszentmihalyi descreve isso como o estado de Flow. Levei bastante tempo para aprender a falar esse nome. É mais ou menos como mirráli tchiquizênmirráli. Ele tem dois livros de que eu gosto muito: Flow e Criatividade. Tem uma roupagem marqueteira, mas é bem interessante, prometo.

Eu entro no flow ou no estado de hiperfoco com bastante facilidade. E nem é a intoxicação por terebintina, não.

Aqui, todo mundo já está meio doidão. Nina Simone, que sempre me segue pela casa, passou a evitar o ateliê. Foi esse o sinal de que eu estava exagerando.

Para Nina voltar a falar comigo, botei luvas, cachecol, meia de lã e gorro e abri as janelas. O mundo lá fora está horrorosamente frio. Ainda por cima, garoa. Como alguém vive em países nórdicos, frios, na neve? Sabe, não por acaso o inferno greco-romano é gelado.

Se algum dia eu me aposentar, ei de me mudar para Salvador.

Nina aprova a ideia.

 

Crônica publicada no Rascunho em 18/07/2024. Ilustração: Bruno Schier.