O mundo se torna um lugar estranho em finais de ano.

Não gosto.

Gosto mesmo é de dias úteis, lugares a ir, compromissos, trabalho e o zum zum zum urbano. Adoro um cronograma, um prazo a cumprir, coisas a fazer.

Essa coisa de se aposentar e ir criar galinhas no interior é um dos meus maiores pânicos.

Não por acaso me esforcei muito para viver em São Paulo. Vim para cá de propósito e por gosto.

Isso dito, o lado interno precisa ser calmo. A balbúrdia, para mim, precisa ser perto o suficiente para ir a pé mas jamais dentro da minha casa.

Estabelecida a minha esquizofrenia, ressalto que a calma induzida por vinho a que recorro nessa época do ano é minimamente funcional e eficaz.

É a época em que todos desejam saúde e felicidade a todos, como se no restante do tempo aceitassem o egoísmo como natural. Colegas de trabalho que se odeiam saem dos seus caminhos para desejarem um Feliz Natal entre si. Todos se amam, todos perdoam, todos se abraçam em uma grande comunhão hipócrita.

Toca a campainha. É uma vizinha. Não sei o nome dela. Não guardo nome de quem eu não gosto. Quer que eu participe de uma caixinha de Natal para o porteiro. Tem um cartão brega cheio de assinaturas. Digo que já dei uma grana diretamente para ele e que, portanto, não vou participar. Com a profundidade de pensamento de um platelminto, me diz que eu devo contribuir novamente para poder assinar o cartão porque é aniversário de Jesus e é isso que diz na imagem com detalhes dourados e relevo seco que ela tão orgulhosamente segura em suas mãos. Nem a Igreja acha que Jesus nasceu no dia 25 de dezembro. Penso, mas não respondo. Conviver com o diferente é uma arte e precisamos exercê-la cotidianamente.

Abro o computador. Centenas de e-mails típicos, nada interessante. Só boas festas isso, boas festas aquilo. Nenhum convite para um samba, nada.

Desço em busca do caos urbano que me faz tão bem. Meu filho me conhece bem e não me dou ao trabalho de inventar uma desculpa. Vou sair para não matar ninguém, digo.

Ruas vazias, shoppings cheios. É o pior dos mundos.

Caminho em uma direção conhecida sem perceber para onde vou. Quando dou por mim, estou no bairro de um ex. Já dizia Freud que a repetição é a força de lidar com o trauma. Volto pelo mesmo caminho. E, ao voltar sem pressa, sem fuga, sem angústia, entendo que realmente acabou.

Crônica publicada no Rascunho, em 31/12/2021