Crônica "Além de flores nada mais vai no caixão", publicada no Rascunho em 29/09/2022. Ilustração: João Verderame. https://rascunho.com.br/liberado/alem-de-flores-nada-mais-vai-no-caixao/

Hoje, exatamente hoje, dia 29 de setembro de 2022, minha mãe faria 75 anos. Faleceu pouco antes de completar 70, no dia 10 de julho de 2017. No mesmo dia, duas horas antes, fui informada que tinha conseguido um emprego formal, o que tenho ainda hoje. Sempre trabalhei muito. Talvez mais do que deveria. Apesar da longa lista de produções e publicações que carrego no Lattes e no coração, minha mãe sempre quis que eu tivesse a tal da estabilidade que ela nunca teve. Ela foi de uma geração em que “estabilidade” era uma possibilidade e não o conceito abstrato que é hoje.

A convivência nunca foi fácil. Duas mulheres muito parecidas e de gênio forte. É como colocar dois touros no mesmo curral. Não dá certo.

Ser filha de alguém tão fora do padrão é sensacional e dificílimo em igual proporção. Sempre brigamos muito durante os 46 anos em que convivemos nesse planeta. A base da relação, entretanto, sempre foi a de admiração. Hoje, depois de décadas de terapia, entendo que a admiração era recíproca.

Me olho no espelho. Hoje, mais magra, mais velha, mais enrugada, mais cansada, mais bonita, mais feliz, sou a imagem dela. Espelhos.

Mantenho uma parede com fotos de afetos importantes. Nela, duas fotos antigas: ela e eu, crianças, mais ou menos na mesma idade, ambas em preto e branco. É comum as pessoas não saberem quem é quem. Essa semelhança me apavora e me honra. Foram quase 20 anos de terapia para entender quem sou eu. Não foi um caminho fácil, rápido ou indolor até aqui.

Preciso me afastar de espelhos para me enxergar.

Quando morreu, a seu pedido explícito, foi cremada em um caixão simples na presença de menos de dez pessoas no total, incluindo o funcionário do crematório.

Quando eu morrer, doem o que ainda prestar do corpo e queimem o resto, mas quero festa, cerveja, música, dança, um monte de gente. Quero que finjam que vivemos em Nova Orleans e me deem um Jazz Funeral. Aceito um Samba Funeral.

Já avisei meu filho que é para mandar cremar por procuração. Não é nem para ir até lá. Cena horrível, para sempre marcada na minha memória. Terceiriza e vai beber com meus amigos.

Assim como ela, não levarei arrependimentos, nem o peso da hipocrisia. Paulinho da Viola entende a vida.

Ter até profissão parecida não é fácil. Eu tentei. Juro que tentei. Cheguei a cursar Biologia, ter programa de TV, aprendi a pilotar pequenas embarcações e mergulhar, virei animadora, trabalho com tecnologia… São muitas vidas em uma só. Infelizmente não consigo respirar sem escrever, desenhar, pintar. Como ela. Espelhos.

Um pequeno autoplágio aqui, do artigo que escrevi sobre Alice:

Quando Alice está atravessando o bosque onde os nomes não existem (capítulo Insetos do espelho, de Através do espelho), Alice perde não apenas seu nome mas também sua identidade. Não sabe mais quem é.

Fui criada por um espelho. Espelhos são terríveis. Corrompem a nossa compreensão de nós mesmos. Sair do bosque e atravessar o espelho deixa cicatrizes, mas é, ainda assim, necessário.

Existem situações onde quebrar um espelho não dá sete anos de azar.

Existem situações onde quebrar um espelho é um tipo de alforria.

Feliz aniversário, mãe.

Crônica publicada no Rascunho em 29/09/2022