Crônica "Ângulos", publicada no Rascunho em 22/02/2024. Ilustração: Thiago Lucas. https://rascunho.com.br/cronistas/carolina-vigna/angulos/

Da minha janela vejo uma pessoa gravemente doente. Em homecare, sonda, oxigênio, etc. Sua roupa de cama está sempre branca e tem flores na mesa de cabeceira. É uma pessoa claramente bem cuidada e querida. Às vezes tem uma criança dormindo abraçada ao doente. Há sempre alguém sentado a seu lado. Não consigo discernir quem, mas não é alguém uniformizado. Não parece ser enfermagem, mas não tenho certeza. Vejo suas pernas cruzadas e, às vezes, a borda de um livro. É uma cena triste.

Apesar de, felizmente, não estar com a perna quebrada, me sinto um pouco como o fotógrafo L. B. Jefferies em Janela indiscreta (Hitchcock, 1954).

Em outros enquadramentos, um adolescente toca violão; uma mulher dá papinha a um bebê em uma cadeirinha alta; um homem fuma; uma senhora briga no celular; um jovem casal pinta uma parede.

No canto do prédio, um apartamento com luzes apagadas mas iluminado pela noite onde, encostado na tela de proteção, dorme um gato preto. É, sem dúvida, a minha programação favorita.

Do ângulo de onde estou, não consigo ver quem é o maconheiro do andar de cima e nem descobrir onde mora o casal animado que transa loucamente todo santo dia às 21h.

Não sei a história de nenhuma dessas pessoas, não as conheço, não sei seus nomes, suas origens, não sei nada. Crio, portanto, uma história para cada.

A diversão da Nina atualmente é ficar na janela cheirando o vento. Não sei se isso é algum tipo muito específico de network ou se ela só está tentando descobrir o que a sua humana vê de tão interessante assim no buraco da parede.

Quando morávamos perto de NY, minha mãe e eu frequentemente nos sentávamos no meio-fio em algum lugar de Manhattan e ficávamos criando histórias para as pessoas que passavam. Era dos momentos com ela de que eu mais gostava.

Uma das músicas favoritas dela era As vitrines, do Chico. Diz muito sobre essa coisa de observar os outros passarem. A gente só não virou flâneur por excesso de boleto. Vontade é o que não faltou.

No parque, com Nina, refaço mentalmente e em silêncio esses encontros com minha mãe. Sento com Nina ao meu lado no banco, obviamente. Fico imaginando as histórias das pessoas que passam. Às quintas encontro frequentemente com um senhor. Ele senta no banco oposto ao meu, virado em minha direção. A julgar pelo olhar entretido, me parece fazer o mesmo exercício narrativo. Em nosso último encontro, ele levou um livro e, assim, rompeu com a cumplicidade que criei na minha cabeça. Perdi completamente o interesse.

Nina acha que exagero.

Que bom mesmo é só sentar ali e pegar o pouco de sol que atravessa as copas das árvores.

Ela tem razão.

Crônica publicada no Rascunho em 22/02/2024