Sempre foi ausente. Ausente de tudo: da mulher, dos filhos, e principalmente de si mesmo. Mas tudo bem, afinal, estava de acordo com os padrões da sociedade porque provia sua família. Seu cafuné era dinheiro, quando era.

O mais curioso é que se irritava quando seus filhos ainda se surpreendiam, depois de mais de 50 anos, com qualquer demonstração de afeto. Ele já tinha um neto adolescente quando o conheci.

Se vangloriava de ter negado diversos prazeres infantis aos filhos: isso construía caráter, achava.

Ouvia a Hora do Brasil e se achava o mais macho dos homens. Tão macho que não podia chorar, não podia amar, não podia falar. Fazia questão de, ainda, reafirmar sua masculinidade ao dizer a quem quisesse ouvir que, mesmo com aquela idade, ainda tinha amantes.

Certo dia me contou que morou na rua.

O cheiro da poeira, no começo, era a única coisa que me lembrava onde eu estava. É assim: o cansaço é tanto que você primeiro só senta. Depois encosta. As pernas estão pesadas e o corpo não obedece mais. O playboy babaca olha com desprezo. Foda-se ele. Quem não vive minha dor não pode falar da minha vida. Os braços se acomodam, encontram o lugar. Ali, perto da porta fechada. Portas fechadas, história da minha vida. Uma vez me perguntaram sobre o chão. O chão não é ruim. As pedras portuguesas guardam calor durante o dia e esquentam à noite. É delas também que vem o cheiro da poeira. É um cheiro que não desgruda, uma catinga que banho não tira, é um tipo de tatuagem. É um tipo de acalento. Chico Buarque, aquele puto, deve ter morado na rua. Então é assim: para dormir na rua você primeiro precisa deitar e, para deitar, primeiro precisa sentar. É uma coisa do cansaço, sabe? Eu não desisti. Quem desiste não vem trabalhar, não levanta no dia seguinte e se entrega à marvada. Estava ali por necessidade. Ninguém dorme na rua porque quer.

Achei engraçado ele conhecer Chico Buarque.

Era uma figura muito estranha, falava sem parar, mas falava bem, o que o tornava quase agradável. Insistia em desperdiçar momentos em galanteios baratos.

Ele, que ainda tinha a ilusão de deter o controle sobre sua vida, respirava aliviado.

Triste perceber seu cartesianismo. Ele ainda não tinha aprendido o suficiente da vida para entender a dialética.

O curioso é que tinha vivido diversas situações com potencial de riqueza bastante alto, mas aparentemente não foi capaz de compreender o que acontece. Insiste na lógica formal.

A realidade não existe se não for uma concepção estética dela mesma. Existe um erro na matemática, que é a suposição da existência de regras. A vida gastou um tempo absurdo tentando ensinar algo. Ele sequer ouviu.

Busca a perfeição, grave engano. Busca a harmonia, doce ilusão. Busca ser seu próprio Deus, não me parece ter sido bem sucedido.

Respirava aliviado por não ser mais obrigado a suportar o meu niilismo. Eu, sim, desisti. Ele nunca foi capaz de compreender uma existência desprendida de tradição.

Nessa época, eu já escrevia. Escrever é terrível. É doloroso como um parto. Mesmo assim, escrevia o tempo inteiro.

A minha preocupação pelo lógico é absolutamente inexistente. O que não significa, de forma alguma, que eu seja uma pessoa puramente emocional. Quero ser apenas livre. Essa liberdade, por sua vez, dificulta a compreensão de atos puramente sociais, ritualísticos, padronizados.

Foi assim, por um problema aritmético, que eu fui embora.

Ele vivia sozinho em um conjugado com vista para a praia. Já estava praticamente cego na última vez que o vi. Sua primeira mulher havia morrido há muito, louca, internada em um hospício. Não reconhecia mais os netos, nem os filhos.

Estava claramente doente, mas não poderia admitir jamais qualquer ajuda.

Levaram quase uma semana para descobrir o corpo, sozinho, olhando para o mar, imóvel e insensível, como sempre.

 

Crônica publicada no Rascunho, em 15 de outubro de 2020.