Há uma dificuldade intrínseca em ser mulher, gay, gordo, negro, trans etc. A dificuldade é que precisamos provar a nossa existência diariamente. Vidas negras importam e, principalmente, existem. Nesse ponto, gosto mais do slogan We’re here, we’re queer. Você tem que ser respeitado e tem que respeitar qualquer existência, goste você ou não. Sabe por quê? Porque a sua opinião não importa. Digo mais: a sua opinião não importa a mínima. O outro existe, independententemente da sua vontade.

Sabe como chama quando um grupo tenta exterminar o outro, para que, justamente, deixe de existir? Fascismo. Então, se você acha que um determinado grupo de seres vivos não deveria existir, você é fascista.

Não vale para baratas, obviamente. Baratas não deveriam existir.

É muito difícil existir. Essa é uma afirmação que vale para todos e no entanto insistimos que são exclusividade nossa. Achamos que só nós sofremos. Ou, que sofremos mais que o outro. Ou, ainda, que o nosso sofrimento é mais importante que o do outro. Isso vale para diferenças entre gerações, gêneros, sexualidades, idades, etnias, nacionalidades, alturas, pesos, profissões etc. É o fenômeno que leva a discussões políticas inócuas, vazias e inúteis que sempre começam com:

“O político A é corrupto.”

“E o B? Não vai falar do B?”

É também o fenômeno que conduz a afirmações mais absurdas ainda como “gordofobia não existe” ou “não preciso do feminismo”. Olha, vou te contar, a vontade que dá é bater a cabeça do cidadão numa parede até que o juízo volte para o lugar.

O que é grave nisso não é o certificado de burro que a pessoa passa, assina e autentica as 3 vias em cartório. O grave nisso é a negação do outro. Digo isso porque, ao negar a dor ou dificuldade do outro, negamos aquilo que é uma parte constituinte da identidade do outro. Negamos, portanto, o outro.

Certa vez me disseram que eu não sabia o que era andar na rua com medo. Sou uma mulher latino-americana. Sei disso desde que parei de engatinhar.  Em outra ocasião, um homem hétero com filhos adultos veio se queixar comigo que é muito difícil educar filho. Exemplos não faltam. Quando eu estava recém-divorciada, com filho pré-adolescente, trabalhando, cuidando de casa e cursando simultaneamente uma licenciatura, uma pós-graduação e um mestrado, uma colega do mestrado disse que a minha vida era fácil.

O que salva? A arte e a literatura, que são os exercícios pelos quais conquistamos a alteridade, a noção do outro. Só que tem uma pegadinha. Não basta consumir arte e literatura. É preciso viver, não consumir. Ao olhar para os nenúfares do Monet, não basta entender o contexto, a técnica, a importância histórica. É preciso sentir o vento suave, o frescor da água, ver o movimento das folhas, ouvir os passarinhos. Para ver um Monet, é preciso fechar os olhos. O mesmo vale para Tolstói, Liszt, ou qualquer outro. É preciso viver a obra e não apenas conhecê-la porque isso lhe garante um status de intelectual.

O Kant falou sobre isso, chamou de “experiência estética”. E só o fato de eu citar o filósofo aqui mostra para vocês que eu também caio nessa armadilha de querer mostrar ao mundo esse polimento intelectual. Ó como sou culta e inteligente. Acontece que eu acho o Kant um chato de galochas encharcadas e que tudo que ele escreveu poderia ser reduzido uns 80% se ele escrevesse melhor.

É obrigação do escritor conseguir se comunicar. É um direito do leitor querer ler algo palatável.

E aqui eu volto para a questão lá de cima, dos grupinhos sofredores. Muita gente culta e inteligente acha que ilustração não é arte, ou que mangá não é história em quadrinho, ou que funk não é música, ou que fantasia não é literatura, ou que… Você entendeu. Eu posso não gostar de funk, mas não lhe nego a existência ou a importância.

Arte é o que o artista e o fruidor chamam de arte. Literatura é o que o autor e o leitor chamam de literatura. Todo o resto é segregação dor-de-cotovelo. Todo o resto é A dizendo que B é menor, mais chato, menos importante.

Uns tempos atrás rolou no Facebook um papo de que gordofobia não existe. Quem fez essa afirmação foi, obviamente, uma pessoa magra. O argumento era que como não matam gordos na rua, não é fobia. Que homofobia, essa sim, é digna de ser chamada de fobia. Segundo o dicionário, fobia é um medo exagerado ou falta de tolerância, aversão. Fobia não significa assassinato em primeiro grau. O que me impressiona é a violência dessas “ah é apenas uma discussão semântica”. Não é semântica, é a negação da experiência do outro, da identidade do outro. É muito grave, cruel, autoritário, preconceituoso e, em bom português, babaca.

A menos, claro, que a sua fobia seja de baratas.

 

* Em homenagem à minha mãe, que faria aniversário agora em setembro e morria de medo de baratas.

 

Crônica publicada na Revista Pessoa, setembro de 2020.

Revista Pessoa
ISSN 21791929
Lisboa