Crônica "Como resistir?", publicada no Rascunho em 02/11/2023. Ilustração: FP Rodrigues. https://rascunho.com.br/cronistas/carolina-vigna/como-resistir/

Escrevo, notebook no colo, bunda no chão. Obra é sempre um inferno. Olho para as paredes, para os buracos, para o cano aparente, para o fio que não está lá ainda, para a janela suja, para o chão impossível, para as coisas tortas, pedaços faltando. Quase uma metáfora de mim.

A internet funciona, ao menos.

Lá fora um homem grita no megafone. Não consigo compreender o que ele diz. O som alto chega aqui distorcido, misturado com as buzinas, com a chuva, com a música do vizinho.

É um outro tipo de amontoado de obras, buracos, poeiras.

Digo que não, mas no fundo, gosto.

Minha cabeça funciona em sintonia com o espaço onde estou. No momento isso é péssimo.

Escurece. A chuva aperta. Minha vontade é de sair correndo, mas no momento sou babá de pedreiro. Só consigo pensar em remoção de entulho. Os internos, também. Os internos, principalmente. Tenho muito entulho dentro de mim, uma caçamba só não dá conta.

A chuva não espanta os manifestantes. Acho que nada os assusta. Já eu, me assusto fácil. Falam cada vez mais alto, com mais raiva. Não os culpo. Se você está vivo em 2023 e não está puto é porque não está prestando atenção. A fala chega aqui incompreensível, mas como vejo as bandeiras do MST daqui, sei que nossa raiva está do mesmo lado.

Digo que não, mas no fundo, gosto.

Recebo imagens de bebês da guerra em Gaza. Bloqueio.

Recebo print de post de ex bloqueado. Bloqueio.

Recebo textão a favor de Israel. Bloqueio.

Recebo textão a favor da Palestina. Bloqueio.

Recebo vídeo de animais sofrendo no que me parece ser uma campanha a favor do veganismo. Bloqueio.

Não estou dando conta, não.

Minha caixa de entrada não é a sua lata de lixo.

Peço um cronograma detalhado e o cidadão se sente pressionado. Em que mundo essas pessoas vivem?

A chuva dá uma folga e imediatamente escuto o “Elvis da Paulista” cantando no microfone uma música do Frank Sinatra. Como não amar São Paulo? O Sinatra da rua se mistura com a Fitzgerald da minha caixinha. Fica uma cacofonia muito estranha.

So at last, I confess!

And more, much, much more

I said “Yes-yes-yes-yes-yes!”

I did it, I did it my way

Digo que não, mas no fundo gosto.

How can a lady resist?

Crônica publicada no Rascunho em 02/11/2023