Crônica "Duas rodas e zero gás", publicada no Rascunho em 14/03/2024. Ilustração: FP Rodrigues. https://rascunho.com.br/cronistas/carolina-vigna/duas-rodas-e-zero-gas/

Pisquei e completei, nessa semana, 53 bem vividos. Uma pneumonia apagou do calendário a comemoração, o que me deixou bem chateada. Gosto de celebrar a passagem vitoriosa do tempo. Vitoriosa porque estou, ainda, viva. É suficiente para festa.

O cansaço extremo decorrente da doença se mistura com o cansaço extremo do excesso de trabalho, com o cansaço extremo das demandas abusivas e o cansaço extremo dos poucos dias de repouso. Ando com a energia de um chuchu cozido. Minha lista de pendências só cresce e os prazos encurtam. Sei que vai passar, mas não me reconheço no gastrópode que vejo no espelho.

Estou sem gás até para acompanhar as informações mais importantes na vida: as últimas tretas literárias, as fofocas do prédio e a coluna social informal do trabalho. Tenho me comunicado por memes e figurinhas do WhatsApp.

Continuo gostando da animação, nem que seja a dos outros. Na Paulista, aos domingos, tem Elvis, bailarina, ciclistas, músicos dos mais variados, um mágico, dança circular, caricaturistas, barraquinhas com muitos sabores e cheiros diferentes, artesanato e, principalmente, cachorros.

Em um elaborado sidecar de bicicleta, um menino e seu cachorro. Nina Simone ficou muito confusa. Na dúvida, não latiu. Vai que o cachorro é um jabuti. Ou da realeza, algo assim. Melhor não arriscar.

“Ser um jabuti” é o termo que usamos quando alguém foi colocado em alguma função para a qual não tem formação, preparo e/ou competência. É assim: jabuti sobe em árvore? Não. Então se você vir um jabuti em cima de uma árvore, é porque alguém o colocou lá. Melhor não mexer.

Antigamente, a gente chamava isso de “peixe”. Fulano é peixe de Sicrano. Conforme os anos passam, os animais mudam e os mandantes se tornam anônimos. Sujeitos indeterminados, acovardados, envergonhados.

Para Nina, que é jovem, o cachorro no sidecar é um jabuti.

Pouco tempo faz que passou pela avenida a Pedalada Pelada, com um monte de peladões de bicicleta. Infelizmente, perdi.

Em São Paulo, ser ciclista é praticamente sinônimo de ser ativista político. A cidade é toda pensada para o usuário de carro. Isso está mudando aos poucos com as novas linhas de metrô e as ciclofaixas, mas ainda há muito a ser feito.

Quando ainda morava no Rio de Janeiro, eu andava de bicicleta. Aqui chegando, pensei em manter o hábito. Rapidamente mudei de ideia. Já tem quase 20 anos, mas ainda lembro do pânico absoluto que senti, causado pela agressividade e violência dos motoristas, dos motociclistas, dos guardas de trânsito e até mesmo dos pedestres. Andar de bicicleta na cidade de São Paulo é um ato de coragem e não é para amadores. Eu não sou nem corajosa, nem atleta.

Faço um esforço hercúleo para ir em uma academia brigar contra o sedentarismo e a única possibilidade de andar de bike é se tiver algum tipo de motor envolvido. Minha pedalada hoje tem que envolver um cobertorzinho, almofadas, um bom livro e Nina no meu colo.

Só de pensar em, de fato, pedalar para chegar em algum lugar vai me dando uma leseira que ôxi. Vou aqui passar um café e ligar a Netflix.

Nem posso culpar a pneumonia. A preguiça é anterior e já está instaurada faz tempo.

Além do que, Nina Simone acha esquisito esse negócio de duas rodas. Nem um pouco confiável. Um perigo para rabos alegres.

Crônica publicada no Rascunho em 14/03/2024