Entrevista a Luis Henrique Pellanda

Publicada em 3 partes na Revista Literária Sítio, de Torres Vedras (Portugal), em 26/02/2013, 27/02/2013 e 28/02/2013

ISSN: 1646 – 1355

 

Não me preocupo com a naturalidade – parte 1

Luis Henrique Pellanda é escritor, músico e jornalista. Ou seja, é alguém que pode ser encontrado de todos os lados da barricada onde a palavra está presente. Numa entrevista que se prolongará por três dias, quisemos saber um pouco de cada uma das vertentes do seu trabalho. Assim começamos pelo cruzamento da entre conto e crónica, fugindo rapidamente para o que acontece com a literatura na internet.

Seu primeiro livro, O macaco ornamental, tem “contos” escrito acima do título. Já o Nós passaremos em branco, foi publicado na coleção “Arte da crônica”. Então, tenho grande esperança de você resolver uma pendenga que sempre surge em conversas sobre literatura: qual a diferença entre conto e crônica?

Não sou bom nisso de corresponder a esperanças. Acho que fico devendo, pois vem se tornando cada vez mais difícil fixar diferenças dessa natureza, ou mesmo estabelecer um pequeno conjunto de regras que sirva a todos os autores, cronistas ou contistas, da mesma maneira. Até o romance tem enfrentado suas crises de identidade: o texto mais ligeiro, nem cem páginas de fragmentos, já está apto a ganhar prêmios específicos para o gênero. O que difere, hoje, o romance e a novela? Pelo jeito não há nem régua nem estatuto universal. Falando do que faço, o que posso garantir? Que vejo distinções muito claras pelo menos entre os meus contos e as minhas crônicas. Nestas, o narrador obrigatoriamente se confunde com o autor; ou seja, sou eu. Cronista, apesar de usar recursos narrativos próprios da ficção, converso diretamente com o leitor, outra entidade real, até prova em contrário. Já nos contos, mesmo quando em primeira pessoa, dialogo com outro personagem inventado. E o narrador obviamente não sou eu. Nas crônicas, falo de eventos cotidianos ou pequenos (tudo é pequeno, na verdade), mas prefiro encontrar neles alguma característica de exceção, mesmo que essa exceção esteja na minha maneira de interpretar ou dirigir o que narro. Nos contos, não busco o cotidiano, nem a rua, a praça, a cidade. Sou um contista de personagens, acho, quase um autor de monólogos literários.

Enfim, sei quando escrevo uma crônica ou um conto, mas acho que os leitores não têm mais se importado com isso. É o que percebo neles: se gostam do que leem, não pensam em etiquetar os textos, engavetá-los. Isso é mais entre nós, uma questão técnica, quem sabe moribunda? Como classificar o que faz o Verissimo, por exemplo? Ele escreve contos curtos de humor, alguns estabelecidos entre a anedota clássica e o registro de comportamento, ficcionais da primeira à última linha. E é um cronista. E o que faz a Eliane Brum cronista? Escreve relatos pesadíssimos, curtos e também ficcionais, muitas vezes dando conta dos distúrbios psiquiátricos de personagens totalmente construídas por ela. Mas são crônicas, e não contos psicológicos. O Rubem Braga era outra coisa. O Nelson, outra. O Vinicius, o João do Rio, o Fernando Sabino, a Clarice. Outras. Definições, a cada qual a sua.

Gosto imensamente da forma como você inclui a tecnologia naturalmente, sem sublinhar esta inclusão. Entre outros exemplos, cito:

“(…) aqueles famigerados navegantes de primeiro parágrafo que, em qualquer crônica, linha de jornal, notinha de falecimento, torpedo de barzinho, piada de salão ou tuíte aforístico, buscam somente a verdade, a fofoca ou o escândalo” (PELLANDA, Luís Henrique. Nós passaremos em branco. Porto Alegre : Arquipélago Editorial. 2011, p. 24)

“Em volta do teu rosto, emoldurando uma cara ainda muito jovem, um retângulo trazia a indicação inconfundível: Caldônia.” (PELLANDA, Luís Henrique. O macaco ornamental. Rio de Janeiro : Bertrand Brasil. 2009, p. 34)

Você considera que a naturalidade cotidiana é um aspecto importante para você? Ainda, pensando em tecnologia, você fez booktrailer para O macaco ornamental e para o Nós passaremos embranco, os dois com animação, o que envolve uma produção mais complexa do que gravar um depoimento com webcam. Ou seja, exige um investimento. Você acredita nessa convergência de mídias, que a internet ajuda o livro e vice-versa? E quanto à melhoria na recepção de crônicas/contos, você acha que a aceitação melhor de textos menores se deve em parte à linguagem curta e rápida da internet?

Não me preocupo com a naturalidade enquanto trabalho. É interessante porque, em geral, quando escrevo busco, como disse na resposta anterior, reproduzir/representar uma conversa ou um recado, uma mensagem — de fulano para beltrano, por exemplo —, mas tenho noção de que, só pelo fato de simular algo tão banal ou corriqueiro quanto um bilhete, uma carta, um diálogo entre gente de verdade, já estou atuando lá no extremo do artificialismo. Ninguém vai acreditar nisso, quer dizer, não estou sendo natural, estou escrevendo e reescrevendo, trata-se de uma afetação, não preciso escondê-la. Quando eu era cantor, não tinha jeito: o canto é uma afetação da fala, e qual o problema? Escrever também não é natural, não nesse sentido. Gosto, porém, de tentar dar certa vida independente ao meu texto. Como explicar? Alguns leitores me procuram (e quando você escreve crônicas semanais isso costuma acontecer) para dizer que meus textos (incluindo aí os contos) parecem “vivos”. É um estranho adjetivo para se descrever um amontoado de letras forçadas a assumir determinada postura, mas é uma palavra que vem se repetindo nessas conversas, “vivos”, algo que tenho ouvido de todo tipo de leitor, sejam eles críticos atentos ou simplesmente aventureiros distraídos. E também é uma coincidência que tem me deixado menos insatisfeito com o que faço. Quero dizer, se meu texto parece vivo, me sinto mais livre para morrer um pouco aqui em casa, como autor.

Quanto ao booktrailer, eu o considero um recurso excelente, não apenas para a divulgação de um livro, mas também como linguagem autônoma, não literária. No caso dos booktrailers de livros meus, eu os vejo como trabalhos de arte, não de minha autoria, mas do artista que os concebeu, no caso o Rodrigo Stradiotto, um de meus antigos parceiros musicais, e de quem sou amigo e admirador há décadas. Isso significa, claro, que o investimento não foi financeiro, e sim fraternal. E os filmes resultantes são totalmente independentes da minha visão de autor. São leituras do Rodrigo, não me meto com elas, apenas aprecio, ou seja, elas são outra coisa, não os meus textos, a minha cabeça ou o meu coração. O Rodrigo escreveu esses filmes. Ele os desenhou, musicou e produziu de acordo com o que sentiu como leitor. É como a adaptação de um livro para o teatro, a tevê, ou o cinema. O diretor é quem manda. É claro que aí a tecnologia envolvida vai ajudar a divulgar o livro, e também o nome do seu autor, e o nome do diretor do booktrailer. Isso talvez se converta em vendas, algumas poucas, bem poucas, em todo caso. Não sei, queremos viver disso, mas, você sabe, não gostamos tanto assim de grana! Se gostássemos, não faríamos o que fazemos (só não me pergunte, por favor, o que faríamos). Quanto a outras formas de cooperação entre livro e tecnologia, do comercial ao estético, há muita coisa acontecendo e ainda por acontecer. Me cabe acompanhá-las da arquibancada e, enquanto isso, escrever.

Sobre a melhoria na recepção de contos e crônicas, aí tenho dúvidas mais sérias. Vejo que as crônicas têm reconquistado, sim, um espaço interessante, e até afetivo, na agenda apertada, miudinha, do leitor brasileiro. Mas trata-se de um gênero bastante íntimo, “tradicionalmente” querido, há décadas, pelos brasileiros habituados à leitura. A crônica tem precursores populares e geniais, gente que nos facilitou a vida, e que abriu caminho para toda uma nação de cronistas. Não exagero muito, não. Como editor do Vida Breve, posso assegurar: o Brasil tem tantos cronistas quanto técnicos da seleção brasileira. Recebo e-mails diários de cronistas pedindo para serem escalados no nosso time. Já respondi a muitas centenas de pedidos como esse, não é brincadeira.

Com o conto, a história é outra. Ele tem sofrido certa perseguição por parte dos grandes editores ultimamente, não é segredo. Talvez não seja uma perseguição, é mais uma bobeira. O conto tem sido vítima de uma bobeira de alguns editores e livreiros. E tudo bem, que se danem. É a velha história do “vai por mim, escreva um romance”. Como se escrever um romance fosse garantia de ser lido, vendido e amado. E como se leitura, vendas e amor fizessem de alguém um bom autor.

 

Não posso viver aqui sem escrever sobre essa vida – parte 2

Na segunda parte da entrevista a Luis Henrique Pellanda, começamos por falar da sua literatura, passamos pelo jornalismo e acabamos por entrar na intimidade do autor, buscando aquilo que é o seu posicionamento perante o ato de escrever.

Em O macaco ornamental, o único conto que não é escrito na primeira pessoa é “São Menécio”, que narra, justamente, um homem com a capacidade de sentir a dor dos outros. A alteridade é isso, sentir a dor dos outros? Ainda, mais ou menos no mesmo tema, na maioria das vezes seus personagens estão lidando com as questões masculinas modernas, pós-feminismo, pós-divórcio, pós-tudo, sem ter um pingo de chauvinismo neles, ao contrário de muitos outros autores brasileiros. Você se preocupa com isso, acha que seus livros podem ser uma contribuição para a igualdade?

Pergunta boa, nem sei por onde começar a responder. Gostaria de ser menos vago, mas acho que vou fracassar. Vamos lá. Em relação a meus personagens, faço uma confissão pessoal: tenho certa tendência a gostar dos outros. Sim, é um defeito, não é? Um tara, sei lá, uma fraqueza. Vai que sou perverso? Mas gosto dos outros (não de todos, é claro), e me sinto bem quando consigo me relacionar com alguém. Comemoro, acho um milagre da boa vontade humana — isso existe? Pois tendo a retratar meus personagens a partir dessa minha maneira de viver em comunidade. Quero também me relacionar com eles, apesar de não concordar com tudo que fazem ou dizem fazer. Talvez eu sofra de algum tipo doentio de delicadeza. Dia desses, o João Gilberto Noll disse que me considerava um “escritor delicado” e até perguntou se o termo me ofendia. Muito pelo contrário, achei ótimo, talvez eu deva assumir isso, como quem se assume viciado em álcool, por exemplo. Sou um bêbado, sou um delicado. Pois assumo (só a delicadeza, deixo claro, pois não bebo faz um bom tempo). Sobre contribuir para a igualdade escrevendo, olha, acho que é algo bonito, importante e bem difícil de se fazer. Não acho que devemos escrever sem alguma motivação relevante para nós, sem um objetivo, sem pretensões. Acreditar nisso me parece uma espécie de falsa humildade, uma soberba doida. Então, se um dia alguém me convencer de que algo que escrevi efetivamente ajudou a diminuir as diferenças entre os seres humanos, e as populações humanas, e as nações humanas, puxa, acho que ficarei bastante feliz. Quem não ficaria?

Mas falamos de igualdade e de alteridade, coisas tão complicadas e distintas. Acho ótimo você ter percebido isto: o único conto em terceira pessoa no Macaco é o que fala diretamente dessa relação nossa com o outro. É exatamente o que eu queria. Quando montei o livro, a intenção era esta: dar essa ênfase a este conto, “São Menécio”. Acho que a alteridade é, sim, em parte, sentir as dores do outro, mas também sentir as alegrias do outro, sem que elas nos ofendam ou diminuam. Mas isso não é tudo, é claro. A alteridade também tem a ver com ideias de integração, aceitação, dissolução da noção de indivíduo etc. Sonhos, em suma. São Menécio sentiu, sim, as dores dos outros, mas essas dores eram os sintomas de males que não o afetavam. Por isso ele não tinha medo delas, as dores, não as temia nem valorizava. Mas quando sentiu na pele dores até menores, só que suas, pessoais, tão misteriosas quanto banais, viu que não estava preparado para a vida. Colocar-se no lugar do outro nunca será a mesma coisa que ser o outro. A pergunta é: isso é mesmo o melhor que podemos fazer?

O fato de você ser jornalista me diz que, ao começar algo, você já sabe mais ou menos o tamanho que terá e quanto tempo levará para escrever. Por outro lado, esse treino louco de criar sob demanda, também dá uma disciplina incrível. É essa a chave para gerenciar essa produtividade altíssima que você tem? Morro de inveja. Aproveitando, se puder, fala um pouquinho do Vida Breve.

Não sei se produzo tanto quanto gostaria. Por outro lado, sei que tenho trabalhado bastante. Lancei meu primeiro livro em novembro de 2009 e, de lá para cá, já lancei outros três trabalhos. Foram quatro livros em pouco mais de três anos. Gostaria de lançar um novo volume de contos ainda em 2013, mas não sei se o terminarei a tempo. O negócio é ir com calma. Por outro lado, até o final do ano, sei que já terei terminado um segundo volume de crônicas. É provável que tenha algo para publicar. Mas trabalho com muitas coisas ao mesmo tempo, e quase todas ligadas à escrita, à leitura ou à pesquisa na área da literatura ou da pura fabulação, e isso me atrapalha um pouco no sentido de que, apesar de ser disciplinado, não me organizo exatamente para escrever literatura. Sobre o tamanho dos textos, não sei se o fato de ser jornalista tem a ver com isso, mas já calculo de antemão, sim, a extensão de cada trabalho. Antes de escrevê-los costumo esboçá-los numa caderneta, ou numa folha avulsa qualquer. Quero saber como devo começar e terminar aquilo antes mesmo de sentar ao computador. Mas é coisa simples, nada de esquemas detalhados. São só estruturas rascunhadas.

Sobre o Vida Breve, está aí uma pedra dura, mas boa de quebrar. Faz bem para os músculos. É uma experiência excelente, que edito em parceria com o Rogério Pereira desde 2009. Já passaram pelo site dezenas de cronistas e ilustradores (você entre eles, é claro!), e temos recebido uma ótima resposta dos leitores. A cada dia, de segunda a sábado, publicamos uma dupla fixa, um cronista e um ilustrador, e eventualmente, aos domingos, temos convidados. Ninguém ganha nada, mas nos obrigamos a produzir semanalmente para um público interessado, real e participativo. Dia desses fui conferir o nosso movimento. Atualmente temos, mais ou menos, 25 mil visitantes mensais. E esse número tem aumentado constantemente. Está muito bom.

Li em algum lugar que você jogou seus textos mais antigos no lixo. Você acha que não tinha edição possível ou simplesmente estava farto deles? Qual a importância dessa limpeza para você? Como você lida com as obsessões, com aquelas ideias que perseguem a gente?

Sim, joguei fora dois “romances”, um (mal) concluído e outro em andamento. Eu os escrevi com vinte e poucos anos e jamais pensei em publicá-los, não seriamente. Não achava que estivesse pronto, tratava-se de material ruim, imaturo, inocente, e também percebi, num dia de sorte e sensatez, que meus “romances” eram, na verdade, um feixe grosso de contos frouxamente amarrados. Minha tentação é narrar curto, e não sinto que me falte o que contar ou falar. Tenho assunto. Só não gosto de me estender muito numa mesma história, pelo menos até agora elas nunca me pediram mais que 50 páginas, no máximo. Sobre minhas obsessões, não sei direito quantas são, nem se são realmente obsessões. Mas, claro, há temas que sempre voltam para o meu texto, em geral ligados à memória, ao sexo e à religiosidade (e aí, é claro, estão incluídos assuntos-clichê como o amor e a morte, nem precisamos mais enumerá-los). São temas que têm a ver com todo mundo, mas também particularmente com Curitiba, com os subúrbios da capital, sua proximidade histórica e geográfica com uma zona rural extremamente católica e preconceituosa. Não fujo do ambiente em que fui criado, e não abandono o lugar onde vivo. Se eu sair dele, não é a minha fuga ou a minha negação que vai melhorá-lo. Vivo numa roça iluminada, que hoje também calhou de ser uma metrópole de mais de três milhões de habitantes, uma cidade que, apesar de tudo, tem aprendido a aceitar sua surpreendente (e comovente) vocação cosmopolita. Vivo, portanto, numa cidade grande e violenta, racista, sexista e socialmente cruel, mas sei que, ao mesmo tempo, aqui há cada vez mais pessoas dispostas e capazes de amar e lutar por uma possibilidade real de justiça. Para mim, isso é coisa séria. Não posso viver aqui sem escrever sobre essa vida.

 

Uma métrica especial – parte 3

Terminamos a publicação da entrevista a Luis Henrique Pellanda falando da sua música e da banda Woyzeck (na foto, Pellanda aparece em primeiro plano). Ficamos também a conhecer uma das músicas produzidas pela banda que conta com Pellanda na voz.

Qual a diferença, além das questões técnicas, é claro, entre escrever um roteiro, um conto, uma música? Exigem momentos de vida ou emocionais diferentes ou é apenas um cumprir de agenda: agora preciso/quero fazer isso, amanhã faço aquilo?

Acho que a música sempre foi algo mais emocional. Já escrevi bastante música, mas com ela nunca me senti envolvido num trabalho profissional ou mesmo intelectual. Não estou dizendo que os músicos não trabalham com o intelecto, por favor. Comigo é que era assim, uma espécie de desafogo alegre, algo teatral, envolvendo voz e movimento, dança e corpo, algo que exigia minha presença física num palco e certa desenvoltura de ator, uma máscara, no bom sentido. Não era eu, era o que eu gostaria de ser naquele momento de celebração. É um troço prazeroso, mas cansa. Cansa, mas quando você para, faz falta, e isso é evidente, pois tudo que nos dá prazer, quando acaba, faz falta. Hoje não trabalho com isso, apenas me divirto com isso, e muito raramente. É questão de prazer, não envolve agonias produtivas.

Com roteiros é trabalho. Também há prazer, mas há prazo. E nunca são projetos meus, pessoais. São encomendas. Gosto de trabalhar com isso e, durante o processo, me entusiasmo com as descobertas que ele me proporciona. É bom, mas é algo que faço porque preciso/quero fazer. É onde entra a disciplina. Estou passando por um momento desses agora, trabalhando com alguns projetos de cinema, com outro de teatro e um livro de contos, fora os frilas jornalísticos e as tarefas domésticas. A pia está cheia de louça, as roupas estão sujas, temos que reservar espaço na caderneta para a escolinha da filha, o aspirador de pó, a máquina de lavar, o ferro elétrico, a faxina dos dias.

E, só para completar o raciocínio, quando escrevo literatura, também é porque quero/preciso, mas ninguém nos paga para isso. É aquela boa ação que praticamos à toa e em nome de ninguém.

O nome da sua banda, Woyzeck, é por gostar do Georg Büchner ou por ter um grande senso de humor, ao dar o nome de uma peça inacabada para uma banda? Aliás, adoro Putaria Franciscana e O Gourmet e o Bicho Bom. A banda continua? Sempre achei que escrever é uma questão de ritmo. Você acha que se complementam ou são apenas vertentes diferentes de uma mesma ação, uma mesma emoção?

Quando entrei na banda, lá no fim dos anos 80, o pessoal que me convidou já tinha dado esse carma ao Woyzeck — pobre Woyzeck, como trabalhamos, e tudo por um ou outro prato de sopa! O porquê do nome? Era mais ou menos esses todos, conjugados. Gostávamos de teatro e de música, éramos adolescentes dramáticos mas bem humorados, roqueiros leitores cheios de projetos e pretensões. A sonoridade do nome Woyzeck também tinha a ver com a de alguns sobrenomes curitibanos. Tivemos uma boa trajetória, me orgulho dela e dos meus amigos músicos, que tenho até hoje como irmãos. Eles continuam, tornaram-se, quase todos, músicos profissionais. Mas a banda não, ela parou, embora, como a peça, continue inacabada. Quer dizer, não morreu, apenas parou (me refiro ao Woyzeck, não às outras bandas de que participei). Mas, sim, ainda nos reunimos, às vezes uma vez por ano (embora tenhamos falhado em 2012).

Por fim, também acho que há muito dessa questão do ritmo na tarefa de escrever, principalmente para alguém que lidou com música por tanto tempo. Tudo o que escrevo obedece a uma métrica pessoal, íntima, minha. Cada frase tem que ter tantas sílabas, uma tônica aqui, outra ali etc. Para quê? Para nada. Mania, ou frescura. Ninguém nunca perceberá isso, mas às vezes mudo uma palavra por um sinônimo mais curto ou mais comprido porque acho que determinada frase está com uma sílaba a mais ou a menos. Mudo, leio em voz alta, acho que corrigi alguma coisa e me amanso. Escrever canções não é escrever contos. Mas os caminhos que percorremos enquanto produzimos música ou literatura nos fazem cruzar cenários semelhantes. A paisagem é igualmente excitante. Sempre me deu alegrias aparentadas. Alegrias, sim, porque eu não sinto dor quando faço essas coisas. A dor é um feitiço paralisante.

 

LUÍS HENRIQUE PELLANDA nasceu em Curitiba (PR), em 1973. É escritor, músico e jornalista, formado pela PUCPR, em 1999. Escreveu os livros O macaco ornamental (contos, Bertrand Brasil, 2009) e Nós passaremos em branco (crônicas, Arquipélago Editorial, 2011). Organizou os dois volumes da coletânea As melhores entrevistas do Rascunho (Arquipélago Editorial, 2010/2012). Cronista e coeditor do site Vida Breve, foi subeditor e colunista do jornal literário Rascunho, de 2005 a 2011. Editor do blog de literatura e música Eletroficção, também é cronista da revista Topview. Como repórter, teve passagens pelos jornais Primeira Hora e Gazeta do Povo, onde trabalhou nas editorias de cultura. Também atua como mediador e curador de eventos literários.