Faço as malas para um final de semana de passeio como quem se prepara para uma internação grave: não considero o retorno como garantido.

Posso não voltar por dois motivos: posso não conseguir voltar e posso não querer voltar.

A impossibilidade externa, de não conseguir, é uma ideia que me irrita. Não gosto que pessoas, crenças ou governos ditem como devo viver minha vida.

Quanto à impossibilidade interna, a da vontade, a do desejo, jamais vou a algum lugar sem estar aberta a ele. Às vezes um pequeno café, um sorvete de pistache, uma esquina, um poste, um passarinho ou uma árvore são mais que suficientes para uma mudança de endereço.

Gosto da minha casa, mas casa é algo que se monta. Que se muda. Não é uma lei da física, a respeito da qual nada podemos fazer. A gente enfia tudo num caminhão e pronto, puf, casa agora é outro lugar.

Acho estranho o que as pessoas fazem. Criam uma relação fetichizada e abusiva com o ambiente, e pior, completamente autoinfligida.

Eu quero que a casa, o celular e a rede social me sirvam. Que me atendam. Quem manda sou eu. E eu escolho estar na casa, no celular ou na rede social. Não sou obrigada a nada. Quando foi que a sociedade terceirizou o comando de sua vida para coisas?

Vai ver foi disso que o Heidegger quis dizer com a coisificação da coisalidade da coisa alguma-coisa. Não faço ideia, não consegui passar da página 12.

Quando foi que a arrumação e a limpeza se tornaram mais importantes que usufruir do espaço?

Perdemos essa noção. Casas são lugares onde guardamos nossas coisas, muitas vezes glorificadas como “pertences”. Carros são objetos. Televisores são objetos. Celulares são objetos. Não permito que um objeto, uma coisa, determine ou domine minha vida.

Crianças têm medo de contar a seus pais que quebraram algo. Objetos se tornaram mais importantes que a vivência de seus filhos.

Faço as malas. Meticulosamente leves, vazias, com espaço. O espaço pode voltar com mais objetos, diferentes, que eu talvez queira juntar aos demais ou substituir antigos. Pode voltar vazio. Pode não voltar. Entretanto, se esse espaço não existir desde o início, perco o direito de escolha.

Garanto que todos os documentos que eu possa algum dia precisar estão digitalizados na nuvem e me certifico que toda a burocracia da vida está em dia. Pesquiso que tipo de conversor de tomada vou precisar. Enfio a nota fiscal do notebook dentro do case. Coloco kindle, headfone, chicletes e carregadores na bolsa de mão. Estou pronta para ir. Voltar, a ver.

Tenho planos, praticamente rotas de fuga, para qualquer situação.

Deixo tudo fácil e organizado justamente para um dia poder ligar para um amigo e dizer “Escuta, entra na minha casa, em tal lugar tem uma pasta de documentos, manda pelos correios pro endereço que eu te mandei no whatsapp. A equipe de mudança chega sábado. Recebe pra mim? Obrigada! Não volto mais. Venha me visitar”.

O amigo, estupefato, há de dizer “mas, Carolina, o que você vai fazer em Necochea?”.

Fazendo uma pausa para engolir o meu sorvete, sentada na Heladeria Venezia, responderei “A mesma coisa que eu fazia em São Paulo, ué. Tem internet aqui”.

Meu olhar vai se perder no mar e deixarei meu amigo falando sozinho.

Todos que me conhecem, mais uma vez, irão balançar suas cabeças e pensar que eu não tenho jeito mesmo.

E seguirão com suas vidas.

Crônica publicada no Rascunho, em 19/11/2020