Crônica "Labirintos", publicada no Rascunho em 31/08/2023. Ilustração: Denise Gonçalves. https://rascunho.com.br/cronistas/carolina-vigna/labirintos/

Abro a porta e eles já estão lá, à minha espera. Não sabem de todas as histórias gravadas naquela sala. Das lágrimas no chão. Dos murros na parede. Da gente escorrendo pela escada. Não sabem. Do sangue no ralo do chuveiro. Do choro contido. Do choro derramado. Da solidão. Do abandono. Das dificuldades. Da falta de grana. Da falta de tudo. Da doença da mãe. Não sabem. Do hospital. Da depressão. Da ansiedade. Do pânico. Do remédio ruim. Do remédio bom. Da conversa que nunca aconteceu. Não sabem.

Perguntam algo sobre IPTU.

Preciso voltar para o corpo para que o cérebro possa, então, dar o comando à corda vocal.

Demoro a responder.

A resposta tarda em muitas situações.

Como você vai, por exemplo, tornou-se uma pergunta dificílima.

Os vizinhos mudaram. Mudaram como pessoas ou mudaram de pessoas, tanto faz, mudaram. Desgosto igualmente dos novos. Depois que os fascistas se sentiram representados e saíram de seus esgotos, me aproximo cada vez de menos gente.

O quanto passamos ali. Vou mostrando o lugar como quem faz uma autópsia de um cadáver. Então, senhores, aqui temos o coração transplantado. À nossa direita podemos ver claramente a cicatriz de alguma cirurgia de emergência. Nessa parede aqui, o câncer.

Há um vazio onde um dia já foi meu atelier e a oficina do meu pai, únicos lugares que permaneceram felizes. É, na verdade, a única coisa de que tenho saudades.

O vazio é maior do que o de objetos ou de móveis. É um vazio que corrói.

Mais um lugar de onde preciso sair para não sufocar.

A imagem de um peixe fora d’água, morrendo asfixiado, me ocorre. Talvez tudo o que eu precise seja de um pouco de mar. São Paulo, se tivesse orla, seria o lugar mais incrível do mundo. Com o aquecimento global do jeito que vai, quem sabe um dia.

O azul que o daltônico escolheu ainda está na parede e isso me acalma um pouco. Algumas permanências são boas. De todo jeito, preciso sair dali para não morrer de novo.

Tenho tido muitas mortes nos últimos tempos.

Habita em mim uma longa história de fênix.

Estou convencida de que minha labirintite é de tanto dar a volta por cima.

Saio. A rua é bonita, arborizada.

Dou uma desculpa qualquer e vou embora.

Vou embora de novo.

Crônica publicada no Rascunho em 31/08/2023