Minha vizinha e parceira de experimentos culinários tem 8 anos. Muito melhor que qualquer profissional em ânimo, presença, afeto e companhia. Não troco por nada.

Meu parceiro de shows de rock tem 75, eu acho, algo nessa ordem de grandeza. Deixa a molecada cansada.

Um dos meus melhores amigos, 35.

Minhas amigas margeiam os 40.

Meus alunos e meu filho são, hoje, da mesma geração.

Chego, a galope, aos 51 em menos de um mês.

Passo dias pensando em todas as histórias e memórias cruzadas e sobrepostas que vivemos.

Enquanto um estava aprendendo a andar, eu me divorciava.

Enquanto outro era preso na ditadura, eu ainda era um projeto. Ou nem isso.

Uma amiga transou pela primeira vez no mesmo ano em que meu filho nasceu.

Enquanto eu defendia o doutorado, meu filho chegava à maioridade.

Uma amiga completava a transição, sozinha, corajosa, forte. A conheci anos depois. Gostaria de ter estado lá. Não sei se eu seria de grande utilidade, mas pelo menos eu seria uma companhia incapaz de julgamentos.

Ando pelas ruas olhando os estranhos mascarados e tento imaginar pelo o que estão passando. Será que precisam de um abraço? Aqueles que acham que a máscara de pano de cueca e nariz de fora é aceitável precisam mesmo é de um tapa na cara, mas tudo bem. Continuo andando. Uma menina, mais ou menos da idade da minha vizinha cozinheira, passa, arrastada pela mãe, máscara de bichinho, um olhar triste.

Quantas vezes será que não percebi o olhar triste de alguém? É a pandemia, penso. É a pandemia que aumentou a quantidade de pessoas cabisbaixas e, então, noto. Não sei. Pode ser a idade. A minha idade. Ando mais atenta ao mundo e menos ao meu umbigo.

Saudades da minha mãe. Ela entendia os palimpsestos da vida.

Meu cérebro, filial emérita do Spotify, começa a tocar Tim Maia. Você marcou em minha vida/ Viveu, morreu na minha história/ Chego a ter medo do futuro/ E da solidão que em minha porta bate.

Não me lembro se minha mãe gostava do Tim Maia. Não importa.

Do outro lado da rua, um bêbado. Não me assusta, é um bêbado conhecido, daqui do bairro. Mantenho o curso e passo por ele. Ele cheira mal. Como deve ser terrível ter se distanciado de si próprio a ponto de não se importar mais com isso. Que dor viver assim.

Penso em um amigo, falecido, que se afundou nas drogas por um tempo. É um abandono de si e, ao mesmo tempo, uma luta para se manter vivo. A desistência total dá um fim.

Chego em casa e vejo uma foto que tenho com minha mãe. Eu, pequena, minúscula, no colo dela. Somos parecidas. Palimpsestos.

Penso em uma conversa que tive sobre o suicídio como o ato mais íntimo possível. Não sei se concordo com isso. Existem outros. Parir, por exemplo.

Será que estou extrapolando questões absolutamente pessoais, individuais? Ou será que somos, de fato, conectados e essa dor é também minha dor?

Não tenho respostas, mas fico aqui achando que precisamos de mais empatia, não menos. Precisamos tirar os fascistas do poder, precisamos de empatia, precisamos de alteridade, precisamos da brasilidade que nos foi roubada.

 

Crônica publicada em 17/02/2022 no Rascunho