Venho de uma tradição (e família, mas sem propriedade) que estrutura com cuidado e atenção o pensamento. Isso não significa, veja bem, estar certo. Significa ter um raciocínio estruturado e, se possível, coerente. São coisas às vezes muito distantes. A diferença é que quem é coerente aceita outras coerências. É mais ou menos como a diferença entre ciência e religião: a religião tem dogmas, a ciência se questiona. Eu estou do lado da ciência. Então, se o outro me mostra logicamente que o meu pensamento estava errado, eu mudo, eu repenso, exerço a autocrítica.

Tudo isso para contar para vocês que eu estava errada. Vi Brasília incendiada sem um Nero à altura e tive aquela sensação de são todos farinha do mesmo saco, que, tenho certeza, vocês também sentem de vez em quando. Um desânimo, sabe?

Aí lembrei de um dia em que sentamos, duas amigas e eu, em um boteco que, para ser um boteco, precisava melhorar muito. Era uma porta com uma tiazinha que vendia um café doce e um pão de queijo duro. Só que era muito cedo e nós tínhamos um dia inteiro de trabalho pesado pela frente. O café, ruim ou não, era mais que necessário. Cinco segundos depois de estarmos com a média no copo em mãos, chega um pedinte. Dividimos com ele a comida e pagamos um café. O cara, otimista, diz que estava sempre ali e que durante a semana ele pagava um café pra gente. Achei meigo. Comprei umas balinhas ruins para dar de agradecimento à segurança do museu onde íamos começar a montar nossas exposições e fomos embora.

Saí com a certeza de nunca ter comido um pão de queijo tão sem gosto, mas estava feliz. Feliz por existirem moças como a tiazinha do boteco e pedintes que desejam pagar um café para outros.

Ao final do dia, volto para São Paulo de ônibus. Eu enjôo só de olharem forte para mim, imaginem dentro de uma caixa de metal que sacoleja, acelera e freia durante o que me pareceu ser oito dias. Lá pelas tantas, eu já variando dentre as cores secundárias (laranja, verde e roxo). A senhorinha sentada do outro lado do corredor me oferece água. Muito escuto sobre outras culturas, que o brasileiro isso, que o brasileiro aquilo. Olha, eu morei fora. Você pode morrer estrebuchada em uma viagem dessas que o gringo nem olha na sua cara. Solidariedade, se não nasceu na América Latina, aqui melhor se criou, não tenho dúvidas.

Sim, estamos presenciando um movimento reacionário, racista, misógino, homofóbico, transfóbico, extremista, tudofóbico. Sim, vivemos um período onde o conhecimento científico é equiparado a uma simples crença. Sim, tudo isso, sim.

Não tenho aqui a intenção de ser mais óbvia do que já estou sendo, mas precisamos de mais ciência, de mais poesia, de mais arte, de mais literatura, de mais alteridade. Precisamos de menos mitos, de menos extremos e de menos impunidade.

Ainda acho, entretanto, que o Brasil é muito melhor do que vemos nos jornais. O brasileiro é um povo emocionante, resiliente e, na maioria das vezes, doce. Não dançamos com patos. Nós dançamos com lobos, todo santo dia. Nós matamos a sede na saliva. É essa a nossa força e é por isso que venceremos.

Peço desculpas aos meus 4 leitores pela temática mais pesada do que eu gostaria para essa coluna, mas os acontecimentos recentes me impedem qualquer leveza.

Publicado no portal Vida Breve em 29 de maio de 2017.