Não consigo escapar da reflexão autobiográfica clichê de final de ano.

Minha memória não tem índice ou qualquer tipo de organização e ainda por cima eu erro datas com frequência. Mesmo assim, uma data me é clara. Meu filho ainda usava carrinho de bebê quando nossa companheira canina entrou nas nossas vidas. Ela viu meu filho aprender a andar: uma Alexandria inteira de memórias afetivas. Nessa semana, com 20 anos de idade, ela acabou. Foi uma morte morrida, portanto. É um vazio que toma conta da casa, do sono, do sonho, do tempo.

Nessa viagem autocentrada, tenho a companhia de João Cabral de Melo Neto (A educação pela pedra, 1966):

Os vazios do homem, ainda que sintam
a uma plenitude (gora mas presença)
contêm nadas, contêm apenas vazios:
o que a esponja, vazia quando plena;
incham do que a esponja, de ar vazio,
e dela copiam certamente a estrutura:
toda em grutas ou em gotas de vazio,
postas em cachos de bolha, de não-uva.
Esse cheio vazio sente ao que uma saca
mas cheia de esponjas cheias de vazio;
os vazios do homem ou o vazio inchado:
ou vazio que inchou por estar vazio. 

Meu pós-doc é, de uma certa maneira, sobre Morte e vida severina. Então, é natural que o João (olha a intimidade, minha filha) esteja sentado aqui do meu lado.

O vazio me fascina.

Os japoneses entendem o vazio melhor do que qualquer outra cultura. É o tal do Ma. O Ma em mim saúda o Ma em você.

Desde menina tenho aquela cara de quem não está ali. É o olho a procurar o pensamento que foi longe, para além de onde a vista alcança. Graças a esse sonho perdido, fui driblando a tristeza e nutrindo o vazio, mas nessa época do ano a melancolia me invade.

Cai sobre mim uma inevitável sensação de derrota. A minha é sobre não escapar desses dogmas sociais em que mesmo ateus se veem obrigados a celebrar o Natal. Ah a família, ah o espírito natalino. Ah, a inescapabilidade do inferno, digo eu.

O vazio incomoda porque o vazio não consome, não participa do capitalismo.

O que busco, em essência, é não permitir que outros ocupem os meus vazios com suas tradições, seus conceitos, suas opiniões, suas moralidades. As pessoas acreditam com sinceridade que fazem um Bem (mítico, individual e questionável) ao forçarem sobre nós as suas visões de mundo e de família. Se julgam no direito, portanto, de preencher o vazio do outro. Pobre daquele que não permite.

Calibã (A tempestade, Shakespeare) ganha a fala e perde a liberdade. A sociedade tem enorme dificuldade em aceitar que o diferente fale. Ou seja, que o diferente exista. É uma questão não apenas literária, mas também ontológica.

Especialmente em relação à tolerância e aceitação do diferente, os três últimos anos foram um naufrágio.

O inferno está vazio e os demônios estão aqui.

A literatura resistirá e nós, leitores do Rascunho, passarinhos.

Crônica publicada no Rascunho em 23/12/2021