E eis que 2020 finalmente acabou. Arrancado como depilação a cera quente. A gente fica feliz com o final, mas o processo é doloroso.

Tem muita coisa na vida que a gente faz só pelo fim. Os fins justificam os meios, já dizia o velho Ovídio. Não, essa frase não é do fofutcho do Maquiavel. Muito menos da Clarice ou do Machado. Está em Heroides, do Ovídio que, por sinal, é uma obra sensacional. É uma série de cartas na voz de heroínas gregas que foram sacaneadas.

Um dos trechos de que eu mais gosto é da Penélope chamando o Ulisses de lerdão: “Haec tua Penelope lento tibi mittit, Ulixe; nil mihi rescribas attinet: ipse veni!”. Algo mais ou menos como “Aqui é a sua Penélope, meu muito lento Ulisses; uma carta em resposta não me adianta nada, venha você em pessoa!”. Tradução muito da livre, perdoem os latinófilos de plantão.

Não, eu não li em latim. Li em português mesmo mas não sei onde enfiei o livro e na internet só encontrei a citação no original ou em inglês, então achei que era uma ótima oportunidade para dar aquela esbanjada e vocês ficarem aí acreditando que eu sou mais culta do que de fato sou.

Voltando ao Ovídio. Então, o cara era sensacional. Só lembrando que ele escreveu esses poemas em pleno Império Romano, quando mulheres não eram lá muito consideradas. Então é incrível o sujeito fazer uma obra dessas, figuras mitológicas ou não, com a voz feminina.

Por falar nos romanos e depilação, nessa época os pelos eram considerados vulgares. Então se depilar era hábito de todo mundo, mulheres, homens, ricos, pobres.

Nós temos essa obsessão com pelos desde que o mundo é mundo. Ou seja, desde o Egito Antigo, quando usavam uma mistura de argila, sândalo e mel para retirar pelos da axila.

A não-depilação tem uma origem profundamente religiosa, conservadora e machista. Na Idade Média, as mulheres que se depilassem eram acusadas de bruxaria e de heresia. Afinal, vaidade é pecado. Foi na Idade Média também, para distinguir os cristãos dos judeus ortodoxos, que começou esse péssimo hábito de homem tirar a barba.

O professor Renato Brolezzi (1968-2019) uma vez disse, em aula, que era possível escutar à distância os gritos de dor dos homens se depilando nas Termas de Caracala. Nunca encontrei referência disso, mas se ele disse, eu acredito.

As Termas de Caracala, além de serem um lugar bem bacana para passar o dia com a família, pegar aquela piscininha e tal, tinham também uma gigantesca biblioteca pública. Era dividida em dois setores, um para obras em grego e outro para as em latim.

Sempre achei que, no fundo, a aspiração maior do Sesc era ser Caracala. Se não fosse o desmonte da educação, da cultura e da saúde que estamos vivendo, talvez pudesse ser, um dia. Quem sabe?

Enquanto isso, seguimos aqui, arrancando nossas dores, doenças e maus governantes, um a um, na pinça.

 

Crônica publicada no Rascunho em 07/01/2021