Crônica "Provisórios", publicada no Rascunho em 05/05/2022. Ilustração: Thiago Lucas. https://rascunho.com.br/liberado/provisorios/

Fiz um enxerto ósseo, também conhecido como “levantamento de seio maxilar”. Ou, no meu vocabulário, “atropelamento por rinoceronte”. Meu rosto ficou do tamanho e da cor de uma bola de basquete. Mentira. Bolas de basquete são mais clarinhas. Saio da experiência convicta de que dente é uma coisa que deu errado na nossa evolução. Dente, apêndice, miojo, essas coisas.

O pior é que, completamente grogue de remédio e dor, não consegui nem mesmo colocar a leitura em dia. Cinema só rolou depois de mais de 10 dias de muito colo, cafuné e analgésicos. Mesmo assim, agradecendo o uso da máscara.

Fui ver Medida provisória, dirigido pelo Lázaro Ramos. O elenco, a direção, a trilha sonora, o roteiro e a fotografia são irrepreensíveis.

Saí enjoada. Não pelo filme, que é impecável, mas enjoada do mundo.

Não vi a peça Namíbia, não, em que se baseia o filme, mas pelo menos a versão cinematográfica tinha que ser bibliografia obrigatória da alfabetização até a livre docência, em todos os anos, para todas as turmas, de todas as idades e localizações. É desses filmes difíceis de ver, mas que precisam ser vistos. Vá e leve todo mundo que conseguir. Não tenho um ai para falar desse filme. E olha que sou chata.

Em uma nota totalmente fútil e boba, que homem lindo é o Seu Jorge.

Mas prepare-se. Se você tem mais de um neurônio na cabeça, sairá do filme mexido, remexido, movido, machucado, enjoado. E sair assim é o melhor cenário.

O filme é e, se a gente conseguir tirar a milícia do poder, continuará sendo uma distopia.

As falas dos brancos a favor da expulsão dos negros, em especial das personagens de Renata Sorrah e Adriana Esteves, mostram de forma bastante didática o pensamento podre e torto do opressor, que se julga superior, que se julga certo e que não percebe o que faz. Não enxerga um palmo na frente do nariz. “Racista jamais! Só estou fazendo o meu trabalho”, diz a personagem racista.

“Como é que a gente não viu isso? Como é que a gente deixou chegar nesse ponto? Como é que a gente riu disso?”, fala o personagem de Seu Jorge, assustadoramente plausível. Vivemos hoje um Brasil que já riu das bobagens dos fascistas que estão no poder. Nós já fizemos meme com a Damares na goiabeira. Medida provisória mostra avant la lettre (a peça Namíbia, não é de 2011) um futuro desdobramento totalmente possível para a ministra goiaba e sua quadrilha de milicianos. E isso é assustador.

Bom lembrar que a Ancine atrasou deliberadamente o lançamento do filme em mais de um ano. Ou seja, incomodou. E incomodar racistas é sempre uma coisa boa, não importa o contexto. Se tem um racista incomodado, estou feliz.

Lázaro Ramos dá um jeito de terminar o filme um pouco para cima. Afinal, é cinema e ele, melhor do que qualquer um de nós, sabe disso.

Ainda assim, é um soco no estômago, justamente por não ser tão distópico assim.

Saí do cinema com dificuldade de respirar, de andar, de existir nesse mundo.

Pensando bem, o atropelamento por rinoceronte doeu muito menos.

Crônica publicada no Rascunho em 05/05/2022