Crônica "Road trip", publicada no Rascunho em 14/09/2023. Ilustração: Thiago Lucas. https://rascunho.com.br/cronistas/carolina-vigna/road-trip/

Fui em meu primeiro road trip. A estrada é cheia de coisas interessantes. O caminhão que passa do lado fazendo uma sombrinha. As curvas que fazem com que a gente deslize um pouquinho no banco. Aquela vibração de embalar neném que dá um soninho bom. Cheiros muito diferentes. É um passeio de carro muito, muito longo. O parque não chega nunca, que raios de passeio é esse? A conversa dos humanos não chega a ser interessante, já que não falam sobre bolas, parque, pombos ou agrados, mas ainda assim é bom ouvir a voz deles. Mamãe quer matar uma tal de Senhora Vivo. Se alguém perguntar, ela estava comigo. Vovô e mamãe conversam sobre outros humanos que não sei quem são e, pelo que entendi, não possuem bolinhas. Portanto, não interessam em absoluto. Vi uns cavalos lá longe. Lati mas os humanos não pararam o carro. Parecem não compreender a importância de parar para ver cavalos. Ou grama. Uma enorme grama logo ali e a humana continua dirigindo. Às vezes eu questiono a inteligência de mamãe, sabe. Nessa grama toda dava para pegar bolinha muitas vezes e lá longe. No parque perto de casa não tem tanta grama. Eu gosto de grama. E de bolinhas.

Fui desmontar a exposição em Campinas (SP) e, com a ajuda do meu pai, levei Nina Simone comigo. Adoro uma estrada. Se não tivesse um compromisso real, horários e boletos, simplesmente continuaria indo, indo. Será que consigo chegar no Canadá de carro? Gosto de dirigir. Carro é uma coisa que não faz mais nenhum sentido. É poluente, custa caro, é pouco prático, cabem poucas pessoas, engarrafa. Transporte público é infinitamente superior. Mas o fato é que eu gosto de dirigir. Sou velha. Sou de uma geração em que saber dirigir era sinônimo de independência. Nos grandes centros, hoje, ter um cartão de metrô e um celular com Uber tem o mesmo resultado prático. Eu, que não entendo nada de carro, queria um carro manual e vermelho. Dirijo um carro preto e automático. Conforme a idade, desisto com cada vez mais facilidade.

Uma vaca. Mamãe já perdeu oito cavalos, várias gramas, inúmeros postes e agora uma vaca. Não adianta latir. Quem sabe lambidas? Não, não é para responder oooooó. É para parar o carro e correr atrás da vaca. Esses humanos, sinceramente. Um mistério como sobrevivem.

O desmonte acontece sem traumas. Foi rapidinho. Gosto daqui. Gosto do MIS de Campinas. Gosto das pessoas, da casa, do espaço, da proposta. Gosto de tudo. Só não gosto dessa escada que me dá um certo medo. Tudo bem, é rápido, foi rápido. Olhar para o espaço vazio onde algumas horas antes estava a minha exposição é estranho. Esses trabalhos foram emocionalmente difíceis de fazer e me causa um pouco de estranheza vê-los enrolados em tubos no chão, a área toda vazia, o silêncio. Claro, eu sei que isso aconteceria. Saber, sentir e entender são coisas muito diferentes. Mesmo sabendo que meu pai e Nina Simone me esperam, sento no chão do museu um pouco, no espaço em branco. O espaço negativo das minhas composições. O tempo vazio de Miyazaki. Lembro de Tóquio. Quero voltar pelo menos mais uma vez. Levanto, pego as obras já acondicionadas nos tubos de transporte e desço.

Mamãe aparece toda carregada e não consegue fazer nem um carinhozinho. Tento derrubar essa tralha toda para liberar a mão do cafuné mas não deu certo. Esse foi um passeio de carro muito estranho. Não ruim, todo passeio é bom, só estranho. Entramos no carro novamente. Já entendi que não vamos parar nem na vaca, nem nos cavalos e nem mesmo na grama. Não sei para que viemos, então. Vou tirar um cochilo.

Nina dorme no banco de trás. Meu pai e eu voltamos. Como voltamos de tanta coisa. Tanta, tanta coisa. Nem sei mais.

Crônica publicada no Rascunho em 14/09/2023