Crônica "Timbuktu", publicada no Rascunho em 02/02/2023. Ilustração: Denise Gonçalves. https://rascunho.com.br/liberado/timbuktu/ Crônica "Timbuktu", publicada no Rascunho em 02/02/2023. Ilustração: Denise Gonçalves. https://rascunho.com.br/liberado/timbuktu/

E eis que a roda viva recomeça. Os primeiros quatro meses de janeiro foram corridos. Vamos ver se agora, na rotina louca que eu chamo de cotidiano, as coisas ficam mais tranquilas. Ou não. Quem estou querendo enganar? Gosto mesmo é do caos, do prazo mordendo o calcanhar, dos oitocentos projetos simultâneos. E de passear com Nina Simone.

Nina estranha o horário desregrado, a viagem do lançamento do livro e a impossibilidade de sentar no boteco da esquina para tomar café. Estranha mas não desgosta completamente porque agora existem os passeios noturnos. É todo um novo repertório sensorial a perseguir.

Estou dormindo no fuso horário de Timbuktu e vai ser duro voltar à rotina de trabalho. As coisas que a gente faz em sacrifício ao Deus Boleto, minha nossa. Como diz um irmão meu: “isso é Deus me castigando por ser ateu”. Reclamo mais por cansaço que qualquer outra coisa, até porque esse é o melhor horário semanal que eu já recebi.

Nina tomou conta da minha cadeira de leitura, antes um local proibido. Perdi completamente o controle dessa casa. A cachorra faz absolutamente tudo o que quer. E eu acho lindo, provando que não sei adestrar ninguém.

Com o término do pós-doc, decidi estudar francês e aprender Linux em linha de comando. Ou seja, duas iniciativas de resistência ao imperialismo norte-americano. O próximo passo seria comprar menos na Amazon, mas não chegarei a ser tão radical assim. Meu amor pelo meu Kindle ultrapassa qualquer raciocínio lógico, é daquelas coisas que a gente não explica.

Janjo prometeu que 2023 vai ser curativo, um ano de cicatrização. Não foram essas as palavras, não ligo. Como dizia o Quintana, que fique mal explicado, quem faz sentido é soldado. Entrando em sintonia com o país que chamo de meu, estou melhorando a alimentação, fazendo exercício, essas coisas que a gente faz quando quer continuar a viver.

Nina é meu melhor álibi. Não é que eu precise caminhar para não enlouquecer, é a cachorra que precisa sair, veja bem. Ela me olha, cúmplice, aceitando a responsabilidade que não é dela.

Saímos para um desses passeios novos, noturnos, estranhos, por outras ruas, para o outro lado. À noite tem menos pombos, o que agrada à humana mas não à cachorra. Escolho a trilha mais iluminada, não a mais prática.

O garçom do boteco da esquina está em um turno extra. Cumprimenta a cachorra pelo nome, entusiasticamente. Faz uma concessão e acena a cabeça educadamente para mim.

O carro de polícia encosta. Eu acelero o passo como se tivesse cometido algum crime. Digo, algum crime além de ser mulher. Esse, cometo todos os dias.

Faz tempo, uma pessoa LGBTQueroMais me disse que eu não sabia o que era ter medo de sair à noite. Eu ri.

O trecho entre o posto de gasolina e o boteco é escuro. Acelero o passo.

Nina acompanha.

Tenho agora 7 horas para fazer jantar, comer, tomar banho, arrumar a cozinha, dormir, levantar, me arrumar, tomar café e sair.

Um amigo precisa de ouvido.

Em Timbuktu são 4 da manhã.

Abro um vinho.

Abraço a cachorra.

Crônica publicada no Rascunho em 02/02/2023