Minha mãe gostava de ver televisão sem som. Eu entendo e também gosto. O som da televisão é insuportável por não conter silêncios e não permitir criar uma outra narrativa além da que nos é dada.

Hoje vivo o espelho disso, tanto em termos de relação mãe-filho quanto em termos audiovisuais. Adoro a companhia do meu filho e meu filho adora o Youtube. Especialmente no celular. Ou seja, eu me tornei ouvinte de vídeo. A única informação que tenho é a sonora. Não estou vendo a imagem junto com ele.

Completo, tal qual na literatura, a informação ausente com aquilo que me constitui. Atribuímos significado ao mundo à nossa volta a partir de nossa biografia e de nossas referências.

O som era claramente de algum videogame comentado, mas eu levei uns bons minutos para vencer a imagem de uma guerra. A primeira impressão era que meu filho estava assistindo algo sobre a Síria: explosões, tiros e pessoas gritando em um idioma que eu não reconheci.

Nunca pergunto do que se trata justamente porque gosto desse exercício com tempero de Saussure.

Encaro – encaramos, como família – o Natal mais ou menos dessa maneira. Vemos apenas uma parte da informação e então podemos escolher a nossa narrativa. Mudamos a data à conveniência da maioria. Escolhemos cardápios de que gostamos, independente do que diz a tradição. E, principalmente, só convidamos as pessoas com quem queremos estar.

Algo simples, como fazer e comer o que se quer é muitas vezes compreendido como falta de consideração, falta de educação, falta de sei lá o quê.

Tenho uma estranheza gigantesca com esse conceito e tudo que o envolve.

Acho mesmo que a maior consideração que se pode ter com alguém é a honestidade. Invento desculpas para aqueles que não dou valor. Para quem é importante, apenas a verdade.

Poxa, olha, desculpe, mas eu não vou. Não, não tenho nenhum compromisso. É só que eu não quero ir.

O mundo seria um lugar melhor se, ao falar isso, o outro compreendesse que não é uma exclusão daquela pessoa em nossas vidas. É uma exclusão daquele evento de nossas agendas. E que é possível não querer fazer algo e continuar o relacionamento afetivo.

Estamos encerrando um ano que foi dificílimo para todo mundo. Literalmente o mundo inteiro, sem hipérboles. Não basta tudo que passamos? Será que ainda precisamos nos submeter a algo que não queremos?

Não precisamos viver constantemente nos preocupando com a expectativa do outro. É possível ter relacionamentos afetivos importantes e, ainda assim, entender que aquilo que o outro quer pertence ao outro, não a você. É libertador quando paramos de jogar sobre nossos ombros tudo aquilo que não é nosso. Claro, o primeiro passo é entender que aquilo que você quer pertence a você e não ao outro. Experimentem.

Há uma consideração inquestionável em dizer as coisas como elas são. É um carinho. É reconhecer o outro como alguém capaz de manter um raciocínio, uma conversa equilibrada. Não respeito as pessoas com quem não posso dialogar.

Acho mesmo que é essa capacidade linguística – e não a forma como você toma o seu Earl Grey – que separa a cultura da barbárie. É a capacidade de, usando o denominador comum do idioma, se chegar a um entendimento. Quando isso não é possível, passo a considerar aquela pessoa como um animal doméstico: o afeto continuará, mas eu não espero uma resposta inteligente.

Escrevo enquanto escuto o Youtube do meu filho. Ele, deitado no sofá ao meu lado, me fazendo companhia, é o que tenho de mais verdadeiro. É quem dá sentido à minha vida.

Faço uma pausa. Ele me pergunta se o vídeo está atrapalhando. É um menino educado e gentil. Respondo “não, é um acalento”. E ele entende.

Esse ano passarei as Festas vendo série e comendo pipoca com meu filho. Foi um ano difícil para todos e nada ou ninguém é mais importante do que esse momento. Absolutamente nada. Não há tradição, religião, hábito, bons costumes ou expectativa alheia que seja mais importante do que série e pipoca com filho.

E você, já parou para fazer o que é realmente importante para você?

 

 

Crônica publicada

Revista Pessoa em 01/12/2020

Edições Mombak

Lisboa

ISSN 21791929