“Dessas coisas de mãe”, entreouvi no elevador do prédio. Passei o resto do dia tentando imaginar o que diabos eram coisas de mãe. Sou mãe, sou filha, e coisas de mãe sempre me pareceram simplesmente bom senso. Alimente-se direito, cuide de você, arrume o ambiente onde você vive, estude, essas coisas de mãe.

Com um pouco mais de distanciamento, as coisas de mãe são, na verdade, uma generalização impossível. Existem coisas das nossas mães. Não aplicáveis à comunidade mundial de mães.

A minha, por exemplo, traumatizada com a chuva que castiga os cariocas, sempre me ligava quando caía um pé d’água. Mesmo quando não morávamos mais no Rio de Janeiro. Transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), que chama.

A dela, ou seja, a minha avó, muito provavelmente pelo mesmo motivo, enfiou na cabeça que seus parentes não comiam legumes e verduras o suficiente. Inclusive aquele primo vegetariano. Durante um tempo eu achava estranho que as avós de todos os meus amigos lhes ofereciam doces, chocolates e sorvetes. A minha, brócolis, rúcula e acelga. E vinho. Reza a lenda que ela me deu uma mistura de água, açúcar e vinho tinto na mamadeira. Era uma receita italiana antiga para entregar crianças aos braços de Morfeu. Não sei o quanto disso é verdade, mas sempre uso essa história como desculpa para só tomar vinho tinto. Tudo culpa da nonna, obviamente.

Uma ex-sogra levava sempre velas, “para o caso de faltar luz”. Tinha vivido no interior. Devia ser algo comum, imagino. Minha relação com o interior é adocicada pela memória infantil de subir em árvores, comer amoras e andar a cavalo. Grandes chances de não corresponderem à realidade da vida dura, real e concreta de quem vive fora dos grandes centros.

Conheço uma que leva cigarros para o filho. Ambos fumantes, decidiram fazer uma frente de resistência à legislação, à boa educação e à saúde.

A minha mãe, outra lembrança, roubava potes tupperware. Em um almoço qualquer, ela começa a espalhar as sobras. Abrindo o armário, me dá um sermão sobre devolver os potes dela, que ela usa muito, e que se eu não devolver nunca mais qualquer coisa. Armário aberto, mão no pote. Ela ainda olhando para mim, eu começo a rir. O tupperware na mão dela identificado com o nome do meu filho. Silêncio. Nem me dei ao trabalho.

Minha avó, certa feita, tal qual Dante Alighieri, decidiu que ia morrer e começou a se desfazer de tudo. Viveu mais 40 anos depois do frenesi do desapego. Precisou comprar tudo de volta.

Uma amiga, marinheira de única viagem, liga para o filho a cada meia hora. Essa é só louca, coitada.

Uma outra, gaúcha radicada em São Paulo, não deixava o filho sair de casa sem guarda-chuva. Considerando que o São Pedro paulistano há muito se mudou para Salvador e deixou o controle do clima no shuffle, é compreensível.

Aqui no prédio, desde muito antes da pandemia, uma mãe anda com lenços umedecidos e passa na mão da sua filha toda vez que entra pela portaria. O mais engraçado é que um dono de cachorro, que mora dois andares acima, faz a mesma coisa nas patas do seu labrador. Sempre me perguntei se são amigos. Digo, a criança e o cachorro. Os adultos são insuportáveis. Tenho certeza de que não têm amigos. Ninguém os aguentaria.

Uma vez, em um tempo pré-celular, eu que sempre fui esse modelo de comportamento cof cof, sumi. Dei um perdido. Lá pelas tantas, lembrei que eu tinha família e liguei para a minha mãe.

— Onde você está?

— Hmmm… Acho que passando pelo Espírito Santo, agora.

Desse dia em diante, onde você está, assim, quase gritando, em um tom alarmado, era sempre a primeira pergunta que minha mãe me fazia.

Coitada. Eu reclamo, mas não deve ter sido fácil ser minha mãe.

Nossos traumas nos definem. Nossas manias nos entregam.

Eu, não. Eu, claro, não faço nenhuma dessas coisas de mãe. Sou uma santa.

 

Crônica publicada na Revista Pessoa em 07/11/2020