"Um dia a gente chega", crônica publicada no Rascunho em 08/09/2022. Ilustração: Thiago Lucas https://rascunho.com.br/liberado/um-dia-a-gente-chega/

Uma enxaqueca me levou ao pronto socorro e, ali mesmo, tipo combo do McDonald’s, para o neurologista. A primeira enxaqueca a gente nunca esquece.

Aguardando o resultado da tomografia, faço uma piada boba sobre achar lá dentro da minha cabeça algo perdido anos antes. Meu pai, que me conhece de outros carnavais, ri. De repente estamos lá, nós dois, às gargalhadas na sala de espera do hospital. É bom demais rir, minha gente. Não cura enxaqueca, mas lava a alma.

Pensei em quantas salas de espera já estive. Faço um rápido levantamento mental das vezes em que fui paciente e das vezes em que fui acompanhante. Lembro das vezes em que estava sozinha, sem ter com quem rir. São ausências doloridas.

A dor de cabeça diminuiu para a zona do suportável até que rapidamente, mas os flashes brancos continuam. Decidi considerar que é meu olho, fã do meu cérebro, fazendo um bico de paparazzo. Como dizem os italianos, se non è vero, è ben trovato.

O neurologista me revirou do avesso. Se ele não encontrou, no meu cérebro, a receita de torta de palmito que eu perdi em 1997, não há mais esperança de um dia eu lembrar como era mesmo que minha mãe fazia a massa.

Passei por todos os clichês médicos. O neuro que aparentava uns 12 anos de idade, a clínica japa, a recepção lenta. Todos muito sérios, com aquela expressão que médico às vezes tem, de oooh eu sou aqui esse deus que salva seres humanos, tenho a vida em minhas mãos. Tem umas profissões que vou te contar, que preguiça.

Obrigada, senhor, pela minha bolha repleta de músicos, escritores, poetas, artistas, povo de humanas, doidos varridos, gente desvairada.

A única coisa que importa é rir com quem amamos, mesmo dentro de um hospital. Todo o resto é secundário.

Conversando com namorado sobre rir de si mesmo, contei que sei o exato momento em que comecei a rir de mim mesma. Pelo menos no que diz respeito à ausência de bússola interna que me acomete.

Foi em janeiro de 1998.

Filho é a personificação do GPS. Sendo meu filho, muito provavelmente por sequelas de guerra, coitado.

Pois bem. Estávamos em Amsterdam, que é mais ou menos do tamanho de uma cozinha de rico.

Eu, celular com mapa na mão. Olhando para o mapa. O mapa com setinhas explicativas, legenda, direção, tudo.

Digo, convicta: vamos para lá. Filho, sempre muito paciente com a senilidade materna, aponta para o lado oposto e diz não, mãe, é para lá. Eu insisto. Afinal, a mãe sou eu. Matripoder e outras idiotices.

Filho: vou te dizer o que vai acontecer, mãe, você vai teimar, nós vamos para lá, chegando lá você vai ver que não é ali, vai pedir informação, alguém vai te responder e então nós vamos para aquela rua ali.

Eu teimei, fomos para onde eu queria, chegando lá vi que não era, pedi informação, alguém respondeu e então nós fomos para onde meu filho tinha dito que era.

Ele, em uma mistura muito sua de sarcasmo com estoicismo, permaneceu em silêncio do meu lado.

Nunca mais teimei. Ou olhei mapinhas. E passei a rir do meu senso de (des)orientação.

Como diz minha amiga Ju, eu me perco dentro de elevador.

Tudo bem, a Terra é redonda. Um dia a gente chega.

Crônica publicada no Rascunho em 08/09/2022.